terça-feira, 12 de junho de 2007

Do Sísifo que há em mim...



Pois é! Dias há em que a multiplicidade de tarefas nos vem afrontar como empreendimento impossível de realizar. Elas surgem em catadupa e para contrabalançar esta espécie de sufoco apenas se vislumbram imagens-miragens de umas meras horas de descanso. Lá ao longe, o sofá parece um oásis. Inalcançável.
Às vezes, dava jeito ter uma "gavetazinha" (de tamanho gigante!) onde se conseguissem guardar, longe da vista, todas as tarefas que é preciso realizar mas que estão por cumprir. De vez em quando, abria-se a dita gaveta e lá se tirava uma...ou outra... Mas evitava-se o permanente confronto com todas ao mesmo tempo e seria possível gerir melhor o seu constante apelo. Mas não. Eu ainda não consegui arranjar a dita imaginada "gavetazinha". Terrível!
Em contrapartida, o que parece acontecer, inúmeras vezes, é as tarefas aparecerem sem se fazerem rogadas, quer em número, quer em exigência de concretização. Não adianta fugir. Estão por todo o lado. Abre-se uma janela e elas entram feitas vendaval, em forma de pó para limpar ou de ideia para concretizar. Se, ao contrário, a janela é fechada e a porta aberta (é preciso renovar o ar!), ei-las entrando de rompante, sem se fazerem rogadas, sem pedir licença nem nada, instalam-se no dito sofá, então um não-oásis!
Portas e janelas fechadas. Pois. Mas lá estão elas a rondar o espaço da casa. E ainda é pior sentir o seu lamento de passos em volta, a pedir que as deixe entrar. Danadas! Resta sair de casa e esperar que não nos persigam, que se esqueçam de ir atrás de nós... Mas não. Das mais estranhas e inesperadas formas se revestem para surpreenderem e aparecerem ali mesmo à frente, batendo o pé, teimosas, expectantes. Ou atrás, sussurrando em lamento a imensa falha da sua realização sempre adiada. Ou de lado, olhando de soslaio, não querendo dar parte de fracas mas mantendo a sua vigilante presença. Impassíveis perante o peso que me fazem sentir. Reparo nelas a partir daquele ângulo onde o olhar quase consegue eclipsá-las. Mas as malandras deixam-se vislumbrar num cantinho da minha esgotada visão que até acontece ser visão raios-x, por vezes, conseguindo atravessar paredes e todo o tipo de obstáculos, vendo-as com toda a nitidez por detrás de tudo! Isto é que é um poder! Pena ser o meu único pretenso super-poder...
Postas as coisas assim, o que se impõe perguntar é o que fazer com elas. Com as ditas. Às tantas começam a ganhar contornos de fantasmas. O melhor é enfrentá-los. Não permitir espectros indefinidos atrás de nós, dissolvê-los no ar que respiramos à medida que se enfrentam um a um... Apesar da consciencialização que se vai operando, pela qual se torna clara, nítida e distinta a sua inevitabilidade e a necessidade de aprender a conviver com tarefas para sempre.
Faz todo o sentido que a fadiga se imponha, a partir desta existência cumpridora de múltiplas tarefas. E não admira que passe a ser síndroma de fadiga crónica. Talvez não seja possível contornar isto, a não ser com umas ideias românticas... Ora, o que é um pensamentozinho insidioso? Talvez aquele que a pouco e pouco se insinua em nós e penetra não só nos poros, na pele mas também nas ideias, que marca não só os pensamentos mas sobretudo os gestos. E é assim que é possível tomar nota da monotonia das tarefas, da rotina da sua execução, da inevitabilidade da sua necessidade, da perpétua repetição a que estamos sujeitos enquanto espíritos empreendedores que pode acontecer sermos. Mas também fica, pela mesma via, justificada a razão de ser da sua natureza preciosa. Como existir sem elas?! Não seria algo deste nosso mundo!
A fadiga pode ganhar proporções e contornos mais perigosos quando é psicológica. Quer dizer, quando fica claro, nítido e evidente que nunca vamos conseguir realizar tudo. E a vastidão do tudo, tão imensa, cansa logo à partida. É inútil. Não nos é possível. É uma tarefa interminável. Por outro lado, é este processo lento mas inexorável da consciência que nos coloca bem no centro da nossa verdadeira condição: a humana.


É precisamente aqui, neste ponto, que faz sentido recordar esse tão interessante Mito de Sísifo, símbolo do nosso interminável esforço para concretizar uma tarefa em grande medida impossível de realizar. Embora o esforço permanente seja inútil, parece ser igualmente irredutível. Maravilhoso contrasenso! Já me sucedeu, um belo dia, dois belos dias, ... acordar com esta aguda consciência da minha condição "sisifiana". Momentos fugazes, felizmente! Mas que se tornaram dignos de registo. Momentos em que, cansada, pude sentir-me feliz. Feliz perante essa "pedra", a qual com dificuldade se consegue colocar no topo da montanha e logo começa a resvalar para vir ter de novo connosco. Parece mentira, mas consegui sentir-me estranhamente apaziguada perante a tremenda empreitada.
Ai! É em momentos assim que me sinto mais realizada. Feliz por não conseguir ficar de braços cruzados a olhar para a pedra. Rindo-me dela, impassível, imóvel. Ou olhando-a indiferente sem sequer a ver, de facto. Feliz por não conseguir render-me face à inutilidade do movimento ascendente que volta a impulsionar a pedra para o topo. Sempre repetido. Feliz por esta teimosia persistente. Romanticamente feliz com o inútil. Alegre por possuir esta tarefa tão gritantemente humana. Absurdo? Talvez. Mas quando é que é possível ser-se humano sem se ser absurdo?
Esta absurda humanidade feliz... Que me leva a querer dizer com Camus: " A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração (...). É preciso imaginar Sísifo feliz."
Serei, então, maravilhosamente absurda! Está decidido.

Bom...nesse caso, tenho que ir ali concretizar mais umas tarefas..
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(Imagens: "Sísifo" de autor desconhecido e "Fatigue", ilustração de Steve Adams)