segunda-feira, 28 de maio de 2007

Leituras: Hotel Memória


Sobre o autor: João Tordo nasceu em Lisboa em 1975. Formou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e estudou Jornalismo em Londres, tendo vivido nesta cidade entre 1999 e 2002. Também morou em Nova Iorque entre 2002 e 2004, onde estudou Creative Writing no City College of New York. Actualmente, vive em Lisboa e trabalha como jornalista. Foi vencedor do prémio Jovens Criadores em 2001. O seu primeiro romance, O Livro dos Homens Sem Luz, data de 2004.

Numa entrevista a João Tordo, realizada recentemente no programa "Última Edição" da Antena2, este jovem escritor despertou a minha atenção. Contribuiu para isso o conjunto de referências literárias por ele citadas: Edgar Allan Poe, Jorge Luís Borges, Kafka, Melville e... Paul Auster!
Ora, perante um novo escritor português que se revela admirador de Paul Auster (assim como de todos os outros referidos) e que escreve inspirado pelo estilo e pelo universo austeriano (um novo adjectivo que convém aprofundar), estando esta faceta aliada a uma formação em Filosofia... eu não poderia deixar passar esta leitura em branco. E tornou-se um prazer, mais do que a obrigação de "estar a par de...". Porque João Tordo escreve muito bem.

A sua inspiração literária é clara e imediatamente dada a conhecer pela epígrafe deste "Hotel Memória" :

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." (Paul Auster)

Interessante... Como muitas das frases de Paul Auster. E uma ideia a desenvolver pelo escritor, ao longo do "Hotel Memória".
A história é bem construída, consegue manter o suspense até ao fim e desenrola-se com uma cadência narrativa segura, raras vezes marcada por passagens menos conseguidas. Alguma previsibilidade, num ou noutro momento. No geral, interessante a valer, conseguindo surpreender. E muito!

Ao longo da minha leitura, não pude deixar de estar atenta a comparações com Paul Auster, em busca de similaridades. Elas estão lá. Mas o autor foi totalmente honesto quanto a isso. De facto, há vários elementos que evocam a primeira história da "Trilogia de Nova Iorque" de Paul Auster, A Cidade de Vidro, sendo, no"Hotel Memória", intencionalmente recuperados. O mesmo poderá dizer-se em relação às duas outras histórias da "Trilogia", Fantasmas e O Quarto Fechado. Mas estas nítidas alusões ao universo de Paul Auster fazem, para mim, todo o sentido. Apenas porque assinalam alguns dos aspectos mais interessantes da escrita deste mestre da literatura. Refiro-me, por exemplo, à procura de uma identidade por parte dos personagens, identidade essa que, por vezes, só pode encontrar-se através de uma qualquer busca empreendida ao estilo detectivesco. Esta busca, criada artificiosamente mas plenamente simbólica, na minha interpretação, de uma busca do sentido da existência, procurado de forma recorrente pelos personagens. Mas existem outros temas que poderiam ser assinalados, a propósito deste paralelismo. É o caso da situação-limite do esquecimento de si que culmina num torpor de vagabundagem. Em Auster e neste "Hotel Memória". Esta queda vertiginosa que procura escapar às memórias, em confronto com a inevitabilidade das mesmas. Os temas não ficam por aqui e seriam, certamente, interessantes tópicos para discussão num Clube de Leitura...

De acrescentar que João Tordo não fica atrás de Auster na construção da narrativa. O escritor domina com segurança o desenrolar de uma trama muito bem arquitectada e que nos leva a virar as páginas sem darmos conta. E isto passa-se até ao fim, literalmente. Tal como Auster, recorre à técnica "histórias dentro da história". O que é do meu particular agrado.
Mas não só de Paul Auster, João Tordo se reclama. São muitos os ecos de Edgar Allan Poe neste romance, por exemplo. Numa fuga clara a atmosferas realistas, o escritor consegue com eficácia recriar ambientes carregados de tensão, onde a comunicação hipotética entre dois mundos distintos, estranhamente, acontece.

No entanto, foi com o maior interesse que procurei, igualmente, descobrir a voz própria do autor João Tordo. Se fosse apenas um Paul Auster de Portugal, já teria tremendo valor e interesse, para mim. Mas acontece que este escritor é mais do que isso. Escreve bem e tem um cunho pessoal a desenvolver. Algo que certamente virá a provar no futuro... E ao qual estarei atenta.
Desde já, incluo João Tordo na minha futura lista de leituras. Procurarei ler o seu primeiro romance que me escapou. É sempre revigorante descobrir que há novos caminhos a percorrer nas letras portuguesas, pela mão de novos talentos. Como é o caso deste.



A história
: «Em Nova Iorque, um estudante apaixona-se por uma rapariga enigmática com quem vive uma intensa relação. Mas a morte desta, inesperada e violenta, enche o protagonista de culpa e remorso, lançando-o numa espiral descendente até o transformar num vagabundo, sem dinheiro e sem posses.
Prisioneiro do Memory Hotel, um pardieiro na Baixa de Manhattan que parece destinado a albergar criaturas perdidas como ele próprio, é contratado por Samuel, um milionário excêntrico, para procurar um fadista português emigrado para os Estados Unidos quarenta anos antes.»
(Assim se lê o resumo da história na contracapa do livro)
(Editora: Quidnovi Literatura Portuguesa)

Excertos: " A verdade era que, se eu tinha opiniões, elas já não importavam. Decidira que o meu destino era sobreviver a todo o custo, e essa decisão retirara-me o poder de escolher, de intervir, de moldar a minha vida segundo as minhas crenças. A cada dia que passava, enfiado no meu pequeno buraco dentro da cozinha, sentia que o meu espírito se ia esvaziando das coisas essenciais que o formavam, se ia desnudando de tudo aquilo que tinha aprendido, de todas as certezas que havia formado sobre o mundo. Já não dependia do álcool, mas não tomara essa decisão; simplesmente acontecera, ao sujeitar-me ao esforço diário de oito horas debaixo do calor infernal de uma cozinha, na posição mais baixa da hierarquia. Quando chegava ao final de um turno, o meu corpo era borracha queimada, pronto a moldar-se a qualquer superfície e ali ficar, entregue a um cansaço tão grande que nenhum lugar, propósito ou pessoa me poderia fazer querer mover. E, em última análise, era isso que eu queria da vida depois da morte de Kim: não a viver, não estar em lado nenhum, não desejar nada."
(...)
"É aqui que tem início a parte mais obscura desta história, aquela sobre a qual mais dúvidas se levantam no meu espírito. É também aqui que começo uma segunda existência, depois de cair e me levantar, tentando fazer sentido de uma vida que, em breve, deixaria de possuir os contornos ilusórios da realidade. Mas isso aconteceu depois, algum tempo depois, quando deixei de saber distinguir os homens das sombras - quando tudo se transformou numa névoa, numa ilusão de passado, e cheguei a concluir, com a acutilância de um detective, que nunca poderemos saber o que se passou num tempo anterior a nós; nem, muitas vezes, saber a verdade das coisas que acontecem diante dos nossos olhos."
João Tordo, in "Hotel Memória"

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Inutilidades


O instante é fugaz, o minuto é fugaz, a hora é fugaz. As coisas, não sabemos o que são nem porque se vão, se gastam. E nós? Dias para trás. A vida é fugaz. E nós?
Ali, ao balcão da pastelaria, inspirando o aroma do café, olhando os outros no seu constante ir e vir, ela repensou e mastigou de novo, pela milionésima vez, o perpétuo movimento. As mãos daquele homem de gabardina sebenta contavam toda uma vida para trás. Os olhos da rapariga bonita que comia uma torrada diziam que a vida é para a frente. Assim seria?
A rua libertava o seu apelo de corrida. A favor do tempo. Hoje é-se chuva, amanhã sol. Hoje é-se tudo, amanhã nada. Não há estado estacionário que resista a esta força motriz, vinda não se sabe de onde. "De Anima", talvez?
O café estava ali, à sua frente, mas agora, já não. Incorporado em si, iniciava agora uma nova existência, convertido no seu estômago numa nova essência. A perpétua transformação... de tudo.
Desejou ter a recapitulação total da sua existência anterior guardada em folhas de papel, unidas por um cordel que as impedisse de se soltarem, espalharem e perderem. Ou arquivadas num moderno ciberficheiro que pudesse abrir e consultar, em qualquer lugar, a qualquer hora. Reter. Reviver. Contrariar a seta do tempo.
Reparou nos carros que circulavam vertiginosamente à sua frente, por trás dos vidros frios da pastelaria, fugindo de modo irreversível ao seu olhar. Era algo chocante rever-se no absurdo dos seus pensamentos, na inutilidade dos seus desejos. Porque também a dominava o desejo de quietude, logo deixado para trás ao olhar o tempo marcado nos relógios e a premência de ir ao encontro de qualquer coisa a realizar. Porquê o vago mas intenso desejo de quietude? Porquê esta necessidade de parar um pouco e perder-se em divagações inúteis? Se nada pára. Se nada pretende parar. Nem nada pretendemos verdadeiramente que pare. Parar é morrer, dizem... Mas ela sabia que o seu desejo de quietude não era um qualquer obscuro desejo de morte. Contudo, algo a dilacerava interiormente face ao ritmo vertiginoso de tudo o que acontecia. Talvez gostasse muito simplesmente de um abrandamento de ritmo... Mas não, era mais do que isso. Era a sensação de perda irreversível. Sim, agora conseguia nomear com rigor o que sentia. Perda. Perda de cada segundo que foi e já não era. E que não voltaria a ser. A velocidade aumentava essa sensação e convertia-a em sentimento de impotência.
Pagou a despesa, o café, o queque, a água. Já estava fisicamente parada há demasiado tempo. Algo vital, lá de dentro de si, reclamava movimento. Com pena, olhou para trás, olhou-se no momento imediatamente passado, reviu-se encostada ao balcão, inutilmente pensativa. Conseguiu reter por segundos essa imagem, esse instante. Logo depois, tudo se esfumou. O ar frio da rua deu-lhe ânimo para continuar. No passo inexorável do futuro. A realizar...
Olhou para o relógio e considerou que estava com pressa.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Fernando Pessoa


"O homem não difere do animal senão em saber que o não é. É a primeira luz, que não é mais que treva visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela. É o fim, porque o saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim, o animal se torna homem pela ignorância que nele nasce."
Fernando Pessoa, A hora do diabo




(Imagem: serigrafia de Luis Badosa)

terça-feira, 22 de maio de 2007

Pequeno Apontamento Musical



(Vídeo do Youtube: cena do filme "Tous les matins du monde" - Improvisation sur les Folies)

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Júlio Verne


Às vezes, sabe bem recordar aqueles que no passado fizeram da nossa juventude um tempo onde tudo parecia ser possível!
Umas horas de viagem "mais-além", numa evasão que pode ser tão boa como uma viagem real, agarrada a um livro de Júlio Verne, ou mesmo de um filme sobre uma das suas histórias extraordinárias... bom, parece-me uma perspectiva atraente. Com a qual acordei hoje. E que não sei se terei oportunidade de realizar integralmente... Não sendo hoje, será amanhã. Apetece-me reler. E rever. Subitamente, fez-me falta esta forma de imaginar coisas fantásticas, ao estilo "verneano".
Por isso, aqui fica uma pequena mas sincera homenagem a mais um autor da minha predilecção! Um escritor inesquecível.


"-Ah, meu Deus! - exclamou Nell - , como eu gostaria de ser arrebatada no meio daquele silencioso turbilhão! E que pontos cintilantes são aqueles que brilham no espaço onde não há nuvens?
-São as estrelas de que te falei, Nell. São as infinidades de sóis que representam outros tantos centros de mundos, talvez iguais ao nosso!
As constelações desenhavam-se agora nitidamente sobre o azul-escuro do céu, que o vento ia pouco a pouco purificando.
Nell fitava embevecida esses milhares de estrelas brilhantes que resplendiam por todo o firmamento.
-Mas - observou Nell - se tudo aquilo são diferentes sóis, como se compreende que os meus olhos possam impunemente suportar-lhes o brilho?
-É porque todos esses sóis - respondeu Jaime Starr - gravitam a uma enorme distância. O mais próximo desse número infinito de astros, cujos raios chegam até nós, é a estrela Vega, da constelação Lira, que tu vês quase chegada ao zénite, e que ainda assim dista da Terra cinquenta mil milhares de milhões de léguas. O seu brilho não pode portanto fazer-te impressão à vista. Mas já não acontece o mesmo com o Sol, pois, apesar de estar apenas a trinta e oito milhões de léguas, o seu foco luminoso é tão ardente que ninguém pode fitá-lo."
in Júlio Verne, As Índias Negras

" As margens do Orange continuavam apresentando o mesmo aspecto encantador. Seguiam-se umas às outras florestas de variadas espécies, animadas por inúmeras famílias de aves. Grupavam-se aquém e além árvores da família das protáceas, principalmente as wagen-boom, de madeira vermelha e ondeada, cujas folhas azuis-escuras e grandes flores de um amarelo-claro produziam singular efeito; apareciam também as zwartebast de casca preta, as karrees de folhagem escura e persistente. Umas vezes os bosques prolongavam-se muitas milhas para longe das margens do rio, sempre sombreadas pelos chorões. Outras vezes apareciam de repente grandes clareiras. Eram planícies cobertas de colocíntidas e cortadas por moitas de açucar, compostas de protáceas melíferas, donde se levantavam milhares daquelas aves de canto harmonioso, que os colonos do Cabo denominam suikervogels."
in Júlio Verne, Aventuras de Três Russos e Três Ingleses

Imagens de Júlio Verne: recolhidas aqui
... também aqui
... e ainda aqui: um blog dedicado a Jules Verne e a visitar pelos interessados.

domingo, 20 de maio de 2007

Hoje h(à) Noite










(Youtube-Sade: "Nothing Can Come Between Us")
(Imagens: aqui )

sábado, 19 de maio de 2007

Variações à volta de uma música



A tua voz diz-me que há um caminho para o paraíso. Usando uma escada-invocação.

Peguei na esplêndida ideia e ergui a escada. Gerei uma espécie de invocação. Do amor, da vida, da alegria. Tentei subi-la imperturbável e projectada na fantasia. Estendendo a mão ao paraíso. Com esse toque especial da imaginação, o paraíso inventou-se hora a hora, diante de mim: nenhum lugar espiritual, nenhum lugar material. Um lugar outro como não existia até então. Com uma entrada guardada por um dragão.

E a escada tão frágil, tão desejada, uma escada desenhada e recortada em papelão. Levantada ali por um ladrão. Levantada por mim. Encostada a nada. E que não leva a nada. A não ser ao paraíso. E que não leva a nada. A não ser ao que é preciso para viver quando não se sabe existir sem um pouco de paraíso.

Claro que é possível subir a escada da tua magnífica ideia. Eu subi-a. Claro que me estatelei no chão. Difícil a duradoura suspensão numa escada de papelão. A suportar o meu peso sujeito à gravidade aqui na terra. A lei da gravidade aplica-se em todos os sentidos, físico...e até espiritual. Há sempre alguma coisa que nos obriga a olhar cá para baixo.

Vislumbrei o paraíso e quando estendi a mão para abrir a porta e entrar, toquei nele. Toquei nessa quase-irreal atmosfera. Senti o seu calor flamejante, a sua humidade algo etérea, a sua invocação tão intensa, a sua imperiosa revolução... Até que a escada caiu.

Uma escada precisa sempre de equilíbrio. Muito mais se é de papelão. E não havia ninguém cá em baixo que ajudasse a segurar a escada. Só lá em cima, o dragão. Na sua imponência mitológica, guardando as portas do paraíso. Permitindo apenas um acesso intermitente, entre uma labareda de fogo e outra, ao abrir a boca.

Agora tenho os pés no chão. Pode ser que leve a mais que a nada... Mas eu só conheço, tal como tu, esse caminho do paraíso!

(imagem: Laura Anderson Barbata, Consuelo)

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Fábulas


O Lobo e o Cordeiro
"Na água limpa de um regato, matava a sede um cordeiro, quando, saindo da floresta, surgiu um lobo, que trazia a barriga vazia, porque não comera o dia inteiro.
- Como ousas turvar a água que estou bebendo? - rosnou o Lobo a antegozar o almoço. - Fica sabendo que caro me vais pagar!
- Senhor - falou o Cordeiro - encareço a Vossa Alteza que não vos zangueis, mas acho que vos enganais: bebendo quase vinte passos abaixo de vós, não posso turvar-vos a água.
- Turvas, turvas! - replicou a besta cruel.
- E também sei que, no ano passado, disseste mal de mim.
- Mas como, se nem tinha nascido? Ainda mamo na minha mãe.
- Se não foste tu, então foi o teu irmão.
- Não tenho nenhum.
- Foi algum dos teus. Chega de argumentação. Estou a perder a paciência!
- Disseram-mo. É necessário que me vingue.
Lá mais abaixo, no interior da floresta, o Lobo devorou o Cordeiro, mesmo sem processo e sem trânsito em julgado."
Jean de La Fontaine, Fables, I, 10

Argumentar tem muito que se lhe diga! Vale a pena analisar, a partir desta fábula de conteúdo profundo como todas as de La Fontaine, o tipo de argumentação aqui desenvolvida:
. Argumentação da má-fé
. A decisão antecede a deliberação: argumentar é justificar
. Procura forçada de argumentos
. Refúgio em falsos testemunhos (também sei; disseram-me)
. Argumentos forjados (se não foste tu, então...)
. Fuga para diante, perante a falta de argumentos
Conclusão: existem muitas formas de argumentar e há sempre a possibilidade de escolher uma em detrimento de outras. Mas, sobretudo, parece ser muito importante reconhecê-las...

(imagem recolhida aqui )

quarta-feira, 16 de maio de 2007

As Pedras


Semi-despida aguardas a pedrada no charco
Quando ela vem sentes um pouco do fim
Antecipado na fé e na crença do inútil

Uma outra chega e bate no teu rosto
O amor agora está tingido de sangue
Cada pedra a mais é um beijo proibido
E o céu já não é tecto da tua vida

Morre-se aos poucos atirada aos cães
Morre-se de vez devorada nos olhares

Os olhos consomem-te, agora aos milhares
Como se em visão postiça
Se fizesse justiça

Se eu fosse Deus só por um segundo
Velava por ti espalhada p'lo mundo
Mas eu não sou Deus nem por um segundo...
Adeus!

(Imagem: Pollock, War, 1947)

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Meme 2




"Os homens já não têm tempo para tomar conhecimento de nada. Compram coisas feitas aos mercadores. Mas como não há mercadores de amigos, os homens já não têm amigos. Se queres um amigo, cativa-me.

Antoine de Saint-Exupéry

Algures diz-se que: "Um meme é um «gene cultural» que envolve algum conhecimento que passas a outros contemporâneos ou aos teus descendentes. Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma."

Em resposta ao desafio que me foi colocado pelo simpático e sempre divertido Detesto Sopa.

Deixo assim ficar o mesmo desafio aos autores dos seguintes blogs:

- Os meus dois pés vesgos (Maria)

- Escárnio e Maldizer (Mo)

- Intruso

- Sem-se-ver

- Branco.Azul (Ouriço)

Nota: Todos estão à vontade para aceitar ou não o desafio e dar ou não continuidade a esta corrente memética. Ou porque questionam o fenómeno "corrente", ou porque já foram muitas vezes "desafiados", poderão não continuar, evidentemente. Caso entendam participar, aqui fica a minha sugestão...

Meme 1



"Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: O céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim."
I.Kant, Crítica da Razão Prática
Algures diz-se que: "Um meme é um «gene cultural» que envolve algum conhecimento que passas a outros contemporâneos ou aos teus descendentes. Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma."

Em resposta ao desafio que me foi colocado pelo sempre interessante Lauro António Apresenta.

Deixo agora ficar idêntico desafio aos autores dos seguintes blogs:

- NonBlog (S.)

- Não há nada como o realmente (Mag)

- Saxe (Manhã)

- A Tradução da Memória (Alice)

- Arion (Mais logs)

Nota: Todos estão à vontade para aceitar ou não o desafio e dar ou não continuidade a esta corrente memética. Ou porque questionam o fenómeno corrente ou porque já foram muitas vezes "desafiados", poderão não continuar, evidentemente. Caso entendam participar, aqui fica a minha sugestão...

sexta-feira, 11 de maio de 2007

O Perfume

A autora do Branco.Azul, aqui mesmo ao lado, é apreciadora de perfumes. Eu também sou. Pelo menos, até certo ponto... Há uns tempos atrás, falámos de perfumes da nossa preferência, no blog dela. Nessa altura, fiquei a pensar em perfumes, evidente, mas também no facto de poderem ser considerados verdadeiras criações artísticas, para além de objectos comerciais.
Não só um perfume constitui uma obra de arte como os frascos onde ficam depositados procuram acompanhar essa "ideia" criadora de um aroma. E tornam-se, igualmente, objectos artísticos. Aliás, em todo o perfume que adquirimos, grande parte do seu preço é o preço do seu frasco. Os perfumes, assim como os seus frascos, também têm uma história. Apetece-me recordar um "tudo nada" dela...



"Foi igualmente aqui que Grenouille cheirou pela primeira vez os perfumes na verdadeira acepção da palavra: a simples alfazema ou rosa que era hábito misturar na água dos repuxos quando se davam festas nestes jardins, mas igualmente aromas mais complexos e mais preciosos, de almíscar misturado com essência de flor de laranjeira e de tuberosas, junquilho, jasmim ou canela que flutuavam na noite como um rasto deixado pelas carruagens. "

"Um perfumista era uma espécie de alquimista, executava milagres, assim o pretendiam as pessoas, e, portanto, assim o era. O facto de a sua arte se resumir a um ofício como tantos outros era ele o único a sabê-lo e nisso residia o seu orgulho. Não desejava de forma alguma ser um inventor. Todas as invenções lhe despertavam fortes suspeitas, porque estavam sempre ligadas à infracção de uma regra. Também nem sequer lhe passava pela cabeça inventar um novo perfume para este conde de Verhamont. E também não tencionava, aliás, deixar-se convencer nessa noite por Chénier a adquirir o «Amor e Psique» de Pélissier. Já o tinha. O perfume estava ali, em cima da sua secretária, em frente da janela, num frasquinho de vidro com tampa trabalhada."
O Perfume, Patrick Süskind



"Na sua frente estava pousado o frasco que continha o perfume de Pélissier. À luz do Sol, o líquido emanava reflexos de um castanho-dourado, límpido, sem a mínima opacidade. Tinha um aspecto tão inocente como o do simples chá; e, no entanto, além de quatro quintos de álcool, continha um quinto desta mistura secreta, capaz de entusiasmar uma cidade inteira. (...)

Baldini assoou-se cuidadosamente e baixou um pouco a persiana da janela, porque a luz directa do Sol era prejudicial a qualquer elemento aromático e a qualquer concentrado olfactivo de certa qualidade. Da gaveta da secretária tirou um lenço, lavado, de renda branca e desdobrou-o. Em seguida desrolhou o frasco, agitando-o ao de leve. Posto isto, inclinou a cabeça para trás e apertou as narinas, dado que por nada deste mundo queria tirar uma conclusão precipitada, cheirando directamente do frasco. O perfume devia cheirar-se num estado volátil, aéreo e nunca concentrado. Derramou algumas gotas no lenço que agitou no ar para que o álcool se evaporasse e levou-o seguidamente ao nariz. Aspirou depois o perfume em três lufadas muito rápidas como se fosse um pó, depois expirou-o e abanou-se com a mão, voltou a aspirar segundo este ritmo ternário, e, para terminar, aspirou uma longa lufada que expirou devagar, detendo-se várias vezes, como se a deixasse escorregar por uma longa escada em declive."
O Perfume, Patrick Süskind



"O perfume era ignobilmente bom. Este patife do Pélissier era por infelicidade um artista. Um mestre, perdoe-nos Deus, e sem ter um mínimo de aprendizagem! Baldini desejou ter criado este «Amor e Psique». Não apresentava qualquer traço de vulgaridade. Era absolutamente clássico e harmonioso; e, todavia, de uma fascinante novidade. Era fresco, mas não enjoativo. Era aromático sem ser pesado. Tinha profundidade, uma magnífica, tenaz e marcada profundidade, mas sem nada de pesado ou sofisticado em demasia."
O Perfume, Patrick Süskind

(imagens recolhidas no Museu del Perfum )

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Roma

" Sou homem. Nada do que é humano me é alheio" - Terêncio
(O Homem que se Castiga a si mesmo, 25)


Vorenus
"Roma" é a magnífica série que é possível acompanhar de 2ª a 6ª na RTP2. Por mim, tenho andado muito interessada neste enredo. Parece-me muito bem feita, concebida de forma atraente, com todos os ingredientes de traição, intriga, amores e desamores que cativam a atenção e fazem ansiar pelo próximo episódio.
Vorenus é uma das figuras centrais nesta 1ª temporada da série. A meu ver, representada por um actor deveras interessante que aqui nos aparece na pele de um soberbo militar romano: um Evocati (para informação sobre estes e outros militares da Roma Antiga, clicar aqui).

Vorenus e Níobe

São dignas de destaque as cenas de reconstituição histórica a nível do ambiente das ruas: a sua agitação, o seu colorido, os hábitos e costumes do povo, a mistura das classes sociais, o ambiente de grande ebulição presente nos acontecimentos quotidianos. Uma Roma efervescente!
Igualmente interessante a forma como a condição feminina da época é retratada.

Evocati (Vorenus)

Mas, para além dos enredos e intrigas menores que nos fazem reflectir sobre as possíveis verdadeiras razões do curso da História, a série cativa especialmente pela forma interessante e impressionante como nos mostra determinados aspectos da criação da República e sua transição para o Império Romano: a ambição, a lealdade, a coragem, o desejo de poder, a ânsia de domínio, as múltiplas traições e conspirações, a conquista de territórios, a evolução de uma civilização, o desregramento de hábitos e costumes característicos dos ricos e poderosos, a escravatura...etc.
Acima de tudo, a série é motivo para aguçar a curiosidade em relação à conturbada e violenta história de Roma, assim como em relação aos aspectos característicos da sua civilização. Recordar factos "adormecidos" na memória e "acordar" inúmeras interrogações que este período histórico nos coloca.
O passado é sempre uma óptima forma de poder compreender melhor o presente e projectar o futuro. Por exemplo, um aspecto incontornável, acerca de Roma, é o seu "espírito bélico". Considerar o modo como o exército se encontrava organizado, a sua extraordinária disciplina, o pragmatismo das decisões, as estratégias adoptadas, a dignidade presente ou ausente na conduta dos militares, grandes generais ou meros soldados, ... tudo nos pode fazer pensar. E de forma agradável e atraente.

Júlio César

Mas há um aspecto da série que me inquietou bastante. Não faço ideia se é pura sugestão minha ou se existe, de facto, algum conteúdo efectivamente inquietante. Há um certo ambiente de fascínio imperialista, de ímpeto guerreiro, de ideais de ambição desmedida que podem sugerir certo tipo de objectivos, transportando-nos, agora, para um passado muito mais recente e até para um (im)possível presente.
A leitura a fazer das imagens convém ser cuidadosa e cautelosa. Parece-me... É evidente que Imperador é Imperador e não é possível retratá-lo a não ser como ditador. Interessante é o facto de Júlio César não ter sido Imperador de Roma, mas sim «Ditador». No entanto, todo o seu perfil e todo o seu percurso parecem abrir caminho aos futuros Imperadores. Mesmo sendo um "ser humano" ditador, com toda a sua "humanidade". E claro que depois da ascensão, virá a queda...

Júlio César

Concretamente, senti uma certa inquietação perante esta imagem "sedutora" de comemorações vitoriosas na Roma Antiga:



(imagens e toda a informação sobre a série aqui)

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Apostas


Desvanecida pela perda das ilusões, ela pensava:
"Dias há em que olho para trás e a vida parece ter sido um grande jogo. Jogadora que fui, fiz as minhas apostas. O resultado delas parece escapar-me agora por entre as mãos. Ganhei, perdi... perdi mais do que ganhei, não importa. Apostei. Claro que me sinto derrotada. Nem o que ganhei foi meu. E o que perdi, nunca esteve antes comigo. A vida é uma roleta russa. Amanhã continuo a jogar. Hoje, não. Estou cansada."
Lentamente...adormeceu. Em pleno dia.

(imagem: Después del baile, Ramón Casas i Carbó, 1899)

domingo, 6 de maio de 2007

Leitura

Mulheres que lêem são perigosas

Este livro de título algo provocador, chamou-me a atenção também pela bela capa com que se apresenta à nossa vista. De facto, fiquei interessada pela ideia que imaginei vir a encontrar desenvolvida no seu interior. E assim aconteceu. Há nele textos de reflexão acerca do acto de ler que julgo serem de reter.

O livro mostra-nos também, e sobretudo, uma magnífica colecção de imagens, pinturas na sua maioria, mas igualmente algumas fotografias. Todas elas registam a leitura no feminino, se assim é possível designar o desejo de convívio com os livros e com a literatura em geral, por parte das mulheres. Ao longo da história, nem sempre lhes foi permitida e muito menos incentivada a leitura... Felizmente, quanto a isso, os tempos mudaram muito! Infelizmente, ainda não mudaram tudo. Existem sociedades onde o direito ao conhecimento em geral, e à leitura, em particular, não é ainda uma realidade feminina. Cabe, agora, a todas as mulheres que dispõem desta liberdade, a responsabilidade de fazerem justiça a esse direito mais do que devido. Ou seja, fazer da leitura uma aposta no amor pelo conhecimento e, ao mesmo tempo, na possibilidade de recriar no mundo o universo do sonho e da fantasia.

Homem ou mulher, a todos a leitura pode enriquecer. A ideia deste livro parece-me ser a de homenagear as mulheres do mundo inteiro enquanto leitoras atentas, apaixonadas e interessadas. Porque no caso delas, o direito à leitura teve que ser conquistado. Assim como muitas outras coisas...
Uma sugestão de oferta magnífica para o Dia da Mãe!

Mais informação sobre esta publicação: aqui
e aqui

(imagem da capa do livro: quadro do pintor florentino Vittorio Matteo Corcos)

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Livro: é necessário apoio técnico?

Aux Marches du Palais


"Romances et complaintes de la France d'autrefois"
Música. Beleza extrema. Maravilhosa simplicidade!

Uma das mais belas árias que existem, um coro de igreja cruzado com um canto de guerra, de acordo com Nerval :

Le Roi Louis ( La fille au Roi Louis, airs de cour, 1607)
Le Roi Louis est sur son pont
Tenant sa fille en son giron

Elle se voudrait bien marier
Au beau Déon, franc chevalier.

Ma fille, n'aimez jamais Déon,
Car c'est un chevalier félon;
C'est le plus pauvre chevalier,
Qui n'a pas vaillant six deniers.

-J'aime Déon, je l'aimerai,
J'aime Déon pour sa beauté,
Plus que ma mère et mes parents,
Et vous mon père, qui m'aimez tant.

-Ma fille, il faut changer d'amour,
Ou vous entrerez dans la tour.
-J'aime mieux rester dans la tour,
Mon père, que de changer d'amour.

-Avant que changer mes amours,
J'aime mieux mourir dans la tour.
-Eh bien, ma fille, vous y mourrez,
De guérison point vous n'aurez.

Le beau Déon, passant par là,
Un mot de lettre lui jeta;
Il y avait dessus écrit:
«Belle, ne le mettez en oubli»;

Faites-vous morte ensevelir,
Que l'on vous porte à Saint-Denis;
En terre laissez-vous porter,
Point enterrer ne vous lairrai.




La belle n'y a pas manqué,
Dans le moment a trépassé;
Elle s'est laissé ensevelir,
On l'a portée à Saint-Denis.

Le Roi va derrière en pleurant,
Les prêtres vont devant chantant:
Quatre-vingts prêtres, trente abbés,
Autant d'évêques couronnés.

Le beau Déon passant par là:
-Arrêtez, prêtres, halte-là!
C'est m'amie que vous emportez,
Ah! laissez-moi la regarder!

Il tira son couteau d'or fin,
Et décousit le drap de lin:
En l'embrassant, fit un soupir,
La belle lui fit un souris:

-Ah! voyez quelle trahison
De ma fille et du beau Déon!
Il les faut pourtant marier,
Et qu'il n'en soit jamais parlé.

Sonnez trompettes et violons,
Ma fille aura le beau Déon.
Fillette qu'a envie d'aimer,
Père ne peut l'en empêcher!

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Trava-línguas



Os trava-línguas são sempre muito giros e divertidos, para miúdos e para graúdos. Este livrinho publicado pelas edições Dom Quixote há uns meses atrás, já foi motivo de muitos momentos de diversão para mim, partilhando-o com diversas pessoas.
Trata-se de uma recolha de trava-línguas tradicionais, aqui com adaptação e que dificultam verdadeiramente a nossa dicção. Por isso mesmo, torna-se útil exercitá-la desta forma divertida. Os desenhos são igualmente muito apelativos.

Aqui ficam dois exemplos:

Quando contas contos

Quando contas contos
nunca contas que contas contos
nem que contos contas
contas contos
e que contos contas
a quem quer escutar
é da tua conta
contam os contos que contas
contas com os contos
quando os contos contas
à conta de tanto conto contar
não contas com
que quando contas contos
contos contas
e não te encontras


O imperador de Constantinopla

O imperador de Constantinopla
quis um dia desconstantinoplizar-se.
Quem o desconstantinoplizaria?

Pediu ao vizir de Sandomir
Escreveu ao embaixador do Alvor
Rogou ao capelão do Indostão
Chamou o xeique Muleique

que lhe mandou um desconstantinoplizador
que o desconstantinoplizou sem dor.


in Trava línguas, Luísa Costa Gomes e Jorge Nesbitt

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Cinco minutos da Filosofia do Direito

Primeiro minuto

"Ordens são ordens, é a lei do soldado. A lei é a lei, diz o jurista. No entanto, ao passo que para o soldado a obrigação e o dever de obediência cessam quando ele souber que a ordem recebida visa a prática de um crime, o jurista(...) não conhece excepções deste género à validade das leis nem ao preceito de obediência que os cidadãos lhes devem. A lei vale por ser lei, e é lei sempre que, na generalidade dos casos, tiver do seu lado a força para se impor.

Esta concepção da lei e sua validade, a que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas. Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a segunda estará também o primeiro.



Segundo minuto

Pretendeu-se completar, ou antes, substituir este princípio por este outro: direito é aquilo que for útil ao povo.
Isto quer dizer: arbítrio, violação de tratados, ilegalidade serão direito desde que sejam vantajosos para o povo. Ou melhor: praticamente: aquilo que os detentores do poder do Estado julgarem conveniente para o bem comum, o capricho do déspota, a pena decretada sem lei ou sentença anterior, o assassínio ilegal de doentes, serão direito. E pode até significar ainda: o bem particular dos governantes passará por bem comum de todos. Desta maneira, a identificação do direito com um suposto ou invocado bem da comunidade, transforma um "Estado-de-Direito" num "Estado-contra-o-Direito".

Não, não deve dizer-se: tudo o que for útil ao povo é direito; mas, ao invés: só o que for direito será útil e proveitoso para o povo.

Terceiro minuto

Direito quer dizer o mesmo que vontade e desejo de Justiça. Justiça, porém, significa: julgar sem consideração de pessoas; medir todos pelo mesmo metro.
Quando se aprova o assassínio de adversários políticos e se ordena o de pessoas de outra raça, ao mesmo tempo que acto idêntico é punido com as penas mais cruéis e afrontosas se praticado contra correlegionários, isso é a negação do direito e da justiça.

Quando as leis conscientemente desmentem essa vontade e desejo de justiça, como quando arbitrariamente concedem ou negam a certos homens os direitos naturais da pessoa humana, então carecerão tais leis de qualquer validade, o povo não lhes deverá obediência, e os juristas deverão ser os primeiros a recusar-lhes o carácter de jurídicas.



Quarto minuto

Certamente, ao lado da justiça o bem comum é também um dos fins do direito. Certamente, a lei, mesmo quando é má, conserva ainda um valor: o valor de garantir a segurança do direito perante situações duvidosas. Certamente, a imperfeição humana não consente que sempre e em todos os casos se combinem harmoniosamente nas leis os três valores que todo o direito deve servir: o bem comum, a segurança jurídica e a justiça.

Será, muitas vezes, necessário ponderar se a uma lei má, nociva ou injusta, deverá reconhecer-se validade por amor da segurança do direito; ou se, por virtude da sua nocividade ou injustiça, tal validade lhe deve ser recusada. Mas uma coisa há que deve estar profundamente na consciência do povo e de todos os juristas: pode haver leis tais, com um grau de injustiça e de nocividade para o bem comum, que toda a validade e até carácter de jurídicas não poderão jamais deixar de lhes ser negadas.

Quinto minuto

Há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda a lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade. Há quem lhes chame direito natural e quem lhes chame direito racional. Sem dúvida, tais princípios acham-se, no seu pormenor, envoltos em grandes dúvidas.

Contudo, o esforço de séculos conseguiu extrair deles um núcleo seguro e fixo, que reuniu nas chamadas declarações dos direitos do homem e do cidadão, e fê-lo com um consentimento de tal modo universal que, com relação a muitos deles, só um sistemático cepticismo poderá ainda levantar quaisquer dúvidas."

Radbruch, Gustav, Filosofia do Direito


Para saber mais sobre G. Radbruch, basta clicar aqui

(imagens: fotografias de Sebastião Salgado)

(o meu muito obrigada à colega e amiga que me deu a conhecer este interessante texto)