segunda-feira, 9 de abril de 2007

A Imitação da Rosa


Dalí, A Rosa Meditativa


" Abriu os olhos, e como se fosse a sala que tivesse tirado um cochilo e não ela, a sala parecia renovada e repousada com suas poltronas escovadas(...). Oh! Como era bom rever tudo arrumado e sem poeira, tudo limpo pelas suas próprias mãos destras, e tão silencioso, e com um jarro de flores, (...).

- Ah, como são lindas, exclamou seu coração de repente um pouco infantil. Eram miúdas rosas silvestres que ela comprara de manhã na feira, (...).

Nunca vi rosas tão bonitas, pensou com curiosidade. E como se não tivesse acabado de pensar exactamente isso, vagamente consciente de que acabara de pensar exactamente isso e passando rápido por cima do embaraço em se reconhecer um pouco cacete, pensou numa etapa mais nova de surpresa: «Sinceramente, nunca vi rosas tão bonitas.» Olhou-as com atenção. Mas a atenção não se podia manter muito tempo como simples atenção, transformava-se logo em suave prazer, e ela não conseguia mais analisar as rosas, era obrigada a interromper-se com a mesma exclamação de curiosidade submissa: como são lindas!

(...) Como são lindas, pensou Laura surpreendida.
Mas, sem saber porquê, estava um pouco constrangida, um pouco perturbada. Oh! Nada de mais, apenas acontecia que a beleza extrema incomodava.
(...)

Laura foi buscar uma velha folha de papel de seda. Depois tirou com cuidado as rosas do jarro, tão lindas e tão tranquilas, com os delicados e mortais espinhos. Queria fazer um ramo bem artístico. E ao mesmo tempo se livraria delas. E poderia se vestir e continuar seu dia. Quando reuniu as rosinhas húmidas em bouquet, afastou a mão que as segurava, olhou-as a distância, entortando a cabeça e entrefechando os olhos para um julgamento imparcial e severo.
E quando olhou-as, viu as rosas.
E então, incoercível, suave, ela insinuou em si mesma: não dê as rosas, elas são lindas.

Um segundo depois, muito suave ainda, o pensamento ficou levemente mais intenso, quase tentador: não dê, elas são suas. Laura espantou-se um pouco: porque as coisas nunca eram dela.
Mas estas rosas eram. Rosadas, pequenas, perfeitas: eram. Olhou-as com incredulidade: eram lindas e eram suas. Se conseguisse pensar mais adiante, pensaria: suas como nada até agora tinha sido.

E mesmo podia ficar com elas, pois já passara aquele primeiro desconforto que fizera com que vagamente ela tivesse evitado olhar de mais as rosas.
Por que dá-las, então? Lindas e dá-las? Pois quando você descobre uma coisa boa, então você vai e dá? Pois se eram suas, insinuava-se ela persuasiva sem encontrar outro argumento além do mesmo que, repetido, lhe parecia cada vez mais convincente e simples. Não iam durar muito - por que então dá-las enquanto estavam vivas? O prazer de tê-las não significava grande risco - enganou-se ela -, pois, quisesse ou não quisesse, em breve seria forçada a se privar delas, e nunca mais então pensaria nelas, pois elas teriam morrido - elas não iam durar muito, por que então dá-las? O facto de não durarem muito parecia tirar-lhe a culpa de ficar com elas, numa obscura lógica de mulher que peca. (...) Olhou-as com enlevo, pensativa, profunda.
E, sinceramente, nunca vi na minha vida coisa mais perfeita.
(...)

Mas com as rosas desembrulhadas na mão ela esperava. Não as depunha no jarro, não chamava Maria. Ela sabia porquê. Porque devia dá-las. Oh, ela sabia porquê.
E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se «ser». Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita. A uma coisa bonita faltava o gesto de dar. Nunca se devia ficar com uma coisa bonita, assim como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração. (Embora, se ela não desse as rosas, nunca ninguém iria jamais descobrir? Era horrivelmente fácil e ao alcance da mão ficar com elas, pois quem iria descobrir? E elas seriam suas, e as coisas ficariam por isso mesmo e não se fala mais nisso...)

Então? E então? indagou-se vagamente inquieta.
Então, não. O que devia fazer era embrulhá-las e mandá-las, sem nenhum prazer agora; embrulhá-las e, decepcionada, mandá-las; e espantada ficar livre delas. Também porque uma pessoa tinha que ter coerência, pensamentos deviam ter congruência: se espontaneamente resolvera cedê-las a Carlota, deveria manter a resolução e dá-las. Pois ninguém mudava de ideia de um momento para outro.

Mas qualquer pessoa pode se arrepender!, revoltou-se de súbito. Pois se só no momento de pegar as rosas é que notei quanto as achava lindas, pela primeira vez na verdade, ao pegá-las, notara que eram lindas. Ou um pouco antes? (E mesmo elas eram suas.) (...) ela não era obrigada a ter coerências, não tinha que provar nada a ninguém e ficaria com as rosas. (E mesmo - e mesmo elas eram suas.)
(...)

Olhou-as, tão mudas na sua mão. Impessoais na sua extrema beleza. Na sua extrema tranquilidade perfeita de rosas. Aquela última instância: a flor. Aquele último aperfeiçoamento: a luminosa tranquilidade.
Como uma viciada, ela olhava ligeiramente ávida a perfeição tentadora das rosas, com a boca um pouco seca olhava-as.
Até que, devagar, austera, enrolou os talos e espinhos no papel de seda. (...) Vagamente, dolorosa, olhou-as, assim distantes como estavam na ponta do braço estendido - e a boca ficou ainda mais enxuta, aquela inveja, aquele desejo. Mas elas são minhas, disse com enorme timidez.

Quando Maria voltou e pegou o ramo, por um mínimo instante de avareza Laura encolheu a mão retendo as rosas um segundo mais consigo - elas são lindas e são minhas, é a primeira coisa linda e minha!, (...) (Ela poderia pelo menos tirar para si uma rosa, nada mais que isso: uma rosa para si. E só ela saberia, e depois nunca mais, oh, ela se prometia que nunca mais se deixaria tentar pela perfeição, nunca mais!)

E no segundo seguinte, sem nenhuma transição, sem nenhum obstáculo - as rosas estavam na mão da empregada, não eram mais suas, como uma carta que já se pôs no correio!, não se pode mais recuperar nem riscar os dizeres!, não adianta gritar: não foi isso o que quis dizer! Ficou com as mãos vazias mas seu coração obstinado e rancoroso ainda dizia: «Você pode pegar Maria nas escadas, você bem sabe que pode, e tirar as rosas de sua mão e roubá-las.» Porque tirá-las agora seria roubar. (...)

Então a porta da rua bateu.
Então devagar ela se sentou calma no sofá. Sem apoiar as costas. Só para descansar. Não, não estava zangada, oh nem um pouco. Mas o ponto ofendido no fundo dos olhos estava maior e pensativo. Olhou para o jarro. «Cadê minhas rosas?», disse então muito sossegada.

E as rosas faziam-lhe falta. Haviam deixado um lugar claro dentro dela. Tira-se de uma mesa limpa um objecto e pela marca mais limpa que ficou então se vê que ao redor havia poeira. As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro dela. No seu coração, aquela rosa, que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar ninguém no mundo, faltava. Como uma falta maior.

Na verdade, como a falta. Uma ausência que entrava nela como uma claridade. E também ao redor da marca das rosas a poeira ia desaparecendo. (...) E na clareira as rosas faziam falta. «Cadê minhas rosas?», queixou-se sem dor alisando as preguinhas da saia.
(...) Já que não estava mais cansada, ia então se levantar e se vestir. Estava na hora de começar.
Mas, com os lábios secos, procurou um instante imitar por dentro de si as rosas. Não era sequer difícil.
(...)

Armando abrira a porta.
Calma e suave, ela disse:
- Voltou, Armando. Voltou.
(...)
- Voltou o quê, disse ele de repente com dureza.
- Não pude impedir, disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava na sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir, repetiu, entregando-lhe com alívio a piedade que ela com esforço conseguira guardar até que ele chegasse. Foi por causa das rosas, disse com modéstia.
(...)
Ela estava sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável. Com timidez e respeito, ele a olhava. Envelhecido, cansado, curioso. Mas não tinha uma palavra sequer a dizer.
Da porta aberta via sua mulher que estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranquila como um trem. Que já partira."

in A Imitação da Rosa, Clarice Lispector