segunda-feira, 30 de abril de 2007

Da música e Rostropovich


Soube pelos blogs Bandida e Caderno de Campo que morreu Mstislav Rostropovich. Alguém que lutou pela liberdade e dedicou a sua vida à música. Alguém para lembrar...


Rostropovich e a música despertam um maravilhoso sentimento: o da admiração! Este desaparecimento só não empobrece a música porque muito nos fica para apreciar e homenagear.
A música é a vida humana na sua expressão mais "colada" às origens e nela é possível descobrir formas de compreensão do incompreensível. O que é vital desdobra-se pela música até chegar a nós, dando-nos finalmente voz, sonho e fantasia. E a coragem do humano, demasiado humano...que em cada momento musical se revela na sua magnífica humanidade.

(imagem no topo do post: Rostropovich por Salvador Dalí)


Cello Sonata No.5 (Part 3), Beethoven



Rostropovich (violoncelo) e Richter (piano)

sábado, 28 de abril de 2007

Poesia


Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
-não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Cecília Meireles

(imagem: Primavera Mágica, Michael Parkes)

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Thinking blogger



Obrigada, Alice! Obrigada, Arion! Obrigada, S.!


Eis-me com a responsabilidade de nomear 5 blogs que me fazem pensar!

1. Depois de ponderar alguns dias
2. Depois de informação acerca desta iniciativa meme
3. Depois de ter concluído que muitos me fazem pensar, mas não posso nomear todos
4. Depois de ter a certeza que estes 5 blogs me fazem pensar
5. Depois de atender ao facto desta decisão ser acerca de blogs que conheço
6. Depois de querer nomear os 3 blogs que me nomearam
7. Decidi no sentido de alargar a corrente...

Eis o resultado da minha decisão:

Sem-se-ver

Detesto Sopa

Branco.Azul

Caderno de Campo

Lauro António Apresenta


Os meus parabéns a todos os que nomeio pelo seu bom "trabalho"!
O meu obrigada por me fazerem pensar!
Agradeço também a todos os blogs com os quais contacto, a enriquecedora partilha de ideias, materiais, perspectivas, humor e simpatia!

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Filosofemos...

É com agrado que assinalo o regresso ao jornal Público das crónicas de Eduardo Prado Coelho. Numa das suas mais recentes, para a qual me alertaram (o que muito agradeço), refere-se a uma temática acerca da qual tenho o maior interesse: o lugar da Filosofia neste nosso presente e no futuro, quer próximo, quer longínquo. Desde já, agradeço também estas oportunas e importantes palavras de E.Prado Coelho, em nome desta área do saber à qual dedico grande parte da minha vida.
Aqui fica, portanto, a sua referida crónica, para registo de mais uma voz que se manifesta em relação ao valor de uma disciplina fundamental para o desenvolvimento de um pensamento crítico e reflexivo, necessário e cada vez mais urgente em qualquer sociedade dita civilizada.
Destaco a ideia de "uma visão do mundo" que a Filosofia pode ajudar a criar. Como pode alguém ocupar um lugar no (seu) mundo, sem se apropriar de uma visão minimamente estruturada, e por outro lado, compreensiva, desse mesmo mundo? Além da crónica, aqui fica também a questão.

"Para onde vai a Filosofia"

24.04.2007, Eduardo Prado Coelho

«Devo dizer que se trata de uma situação francamente inquietante: parece que, por critérios que têm a ver com a ideia de que o país precisa de se desenvolver, a Filosofia tende a desaparecer dos currículos das universidades. Logo a Filosofia, essa disciplina que deveria surgir como a rainha das disciplinas, aquela que as deveria de certo modo organizar, estabelecendo os nexos, as transversalidades, as forças ocultas, os veios essenciais. Poderemos chegar a esta situação algo absurda ou caricatural de vermos alguém chegar a uma universidade e lhe virem dizer que, se quiser saber algo de Filosofia, deverá arranjar um professor particular, ou então procurar uma universidade privada, dessas cujo estatuto é por vezes nebuloso, e procuram encontrar motivos para atrair alunos. É verdade que, na tradição portuguesa, a Filosofia tem um estatuto pouco reconhecível.
Somos mais gente de História, para quem o acto de pensar não tem um estatuto respeitável. Mas, de qualquer modo, a gente reconhece a importância do pensamento. Querem um exemplo algo trivial? Veja-se, no programa Um Contra Todos, o caso desse excelente apresentador que é José Carlos Malato. Ele fez Filosofia, e isso reconhece-se logo no modo de abordar os problemas e na forma como se aproxima dos candidatos. É uma visão de conjunto, capaz de integrar a extraordinária variedade das questões e até a fragilidade ou a força de alguns candidatos.
O que se passa neste momento, e que tem suscitado as reacções indignadas daqueles que se interessam por estas coisas, com reuniões, debates, intervenções públicas, mesas-redondas, é que o Ministério da Educação parece considerar que a Filosofia não deve ter lugar no ensino, pela simples razão de que não tem alunos suficientes. Sejamos objectivos: pelas razões já apontadas, é claro que não tem. Talvez seja frequentada por meia dúzia de pessoas no máximo do seu auge. Mas a verdade é que é preciso distinguir duas coisas: ou encaramos os problemas segundo uma perspectiva meramente economicista (o que, infelizmente, acontece com demasiada frequência no âmbito do Partido Socialista), ou então tem de se ter em conta a própria lógica do sistema universitário, onde é difícil imaginar a ausência da Filosofia. Donde, o que se está a verificar é francamente perturbante. Para onde estamos a ir? Para que tipo de sociedade nos encaminhamos? Tenho grandes dúvidas em relação a todo este processo. Basta de querermos ser apenas eficazes, temos de perceber que as coisas têm a sua especificidade e não vale a pena estar a escamoteá-lo.
Uma escola não pode ser apenas uma máquina produtiva, tem de estar ligada a uma visão do mundo, e, se essa visão do mundo é de esquerda, tem de assumir aquilo que essa esquerda tem como tradição. A ideia de que a Filosofia tem um papel fundamental não é recente, vem muito de trás, provavelmente do romantismo alemão e de alguns nomes essenciais como Schlegel ou Hölderlin. É verdade que, na sua essência, o problema da Filosofia não tem orientação ideológica particular. É uma realidade que se impõe aos olhos de todos e que deveria ser considerada por todos.»
in jornal Público de 24.04.07
(imagem: fotografia de Pedro Noel da Luz)



quarta-feira, 25 de abril de 2007

José Carlos Ary dos Santos


Soneto presente

Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim

a terra de onde venho é onde moro

o lugar de que sou é estar aqui.


Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.

Ary dos Santos

(imagem: Sunlight Collage, John Charbonneau)

terça-feira, 24 de abril de 2007

Porque me apetece...


Fui à minha pequena biblioteca e encontrei um oportuno texto que me apetece recordar:

Quero saber pensar

Imagine que um dia alguém se aproximava de si na rua e em vez de lhe perguntar polidamente as horas, ou onde é que ficava a rua tal, lhe perguntava, com a maior naturalidade:
- Importa-se de me dizer se sabe pensar?

Imagine, com a maior realidade que puder, que essa pessoa lhe pedia que a ajudasse a pensar, exactamente com a mesma naturalidade com que lhe pediria lume ou troco de vinte escudos.

Imagine que lhe faziam essa pergunta assim, na rua, ou em qualquer outra circunstância, e tente avaliar pela sua surpresa ao recebê-la e pela resposta que eventualmente lhe daria, o que é que pensa a respeito da necessidade de saber pensar; se alguma vez teve dúvidas sobre se sabe ou não pensar, ou quantas vezes, e exactamente de que maneira, é que o problema se lhe pôs.(...)

Poucas pessoas terão alguma vez na vida perdido um minuto do seu sono a pôr, ou a tentar resolver, explicitamente, essa questão. Mas todas as pessoas perderam - e perdem continuamente - muito mais do que um minuto, uma hora ou uma noite inteira do seu sono, por não saberem pensar - por não quererem saber pensar.

Quero filhos, quero vodka, quero um ideal; quero uma casa no campo, quero um guru, quero um bife de lombo, quero a eternidade, quero um perfume francês - mas nunca ouvi da boca de ninguém isto:

QUERO SABER PENSAR

Sousa Monteiro, Tire a Mãe da Boca

E este texto apetece-me porque ando um bocado preocupada, acho que não ando a pensar bem e gostava de pensar melhor... ou pior, não sei... mas acho que uma auto-análise faz sempre bem... e deu-me para isto...

Nota: a referência aos "vinte escudos" está, obviamente, desactualizada, mas o resto do texto acho que continua a ser mesmo vanguarda...

Felizmente que há gente "séria", como o autor deste texto, que nos faz pensar e querer saber pensar...
E todos os dias são dias do livro para mim. Divinos livros que tanto me fazem pensar e... que estranho!, tanto me fazem descansar... companheiros insubstituíveis da nossa "Terrena Comédia".

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Dia do Livro



Ou Isto ou Aquilo


Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
Quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e não guardo o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Cecília Meireles

(Imagem: Liliana Gelman, The Library)

Eu, a música e Chopin



O meu interesse pela música existiu desde sempre, julgo, mas foi um interesse que, até hoje, nunca parou de crescer.
Na verdade, é bom que o diga, sei muito pouco de solfejo e nunca aprendi a tocar piano nem qualquer outro tipo de instrumento musical. Com muita pena minha. Resumindo, não tenho nada que me ligue especialmente à música, a não ser um gosto muito espontâneo e, nesse sentido, genuíno. Mas não sou uma entendida no sentido rigoroso do termo, nem nunca vivi muito ligada a qualquer tipo de meio musical. A não ser uma ou outra brincadeira com amizades do tempo da adolescência. Uma ou outra participação em coros musicais nas escolas e em festas de outros tempos. Nada mais.
No entanto, hoje, eu preciso de viver com música, no meu quotidiano. Bom, a verdade é que devo à música (especialmente à que designamos por clássica) muito do meu equilíbrio emocional. Foi a música que me serviu de suporte em fases mais difíceis da minha vida. Não posso dizer que a música curou ou cura todos os meus males mas tenho que reconhecer que foi uma espécie de bálsamo a que foi vital recorrer, por vezes. E ao qual recorro.

Em tempos, numa ida ao médico em virtude de me sentir muito cansada, nervosa e cheia de stress, o que ele me receitou para esses males foi simples: "Chegue a casa e oiça os Prelúdios de Chopin, esqueça tudo e concentre-se nisso..." Enfim... Nessa época, confesso que não liguei nenhuma, achei mesmo algo ridícula tal recomendação. Pensei que o médico estava a brincar comigo. E nem me sentia capaz de perder tempo a ouvir composições tão fora daquilo a que os meus ouvidos estavam habituados. Portanto, não o fiz.

Mais tarde, mais tarde mesmo...tendo arquivado na minha memória aquele conselho, não sei porquê..., experimentei ouvir qualquer coisa de tal género musical, em determinada altura mais sensível, acho. Foi quando, então, me fui apercebendo do poder positivo que exerciam sobre mim certas composições e certos autores clássicos. A partir daí...de muitas formas, esse gosto foi crescendo, o interesse despontando... e parece não ter fim, para já. Assim, este interesse pela música veio somar-se a outros já existentes. E nunca me decepcionou, pois é certo que encontro sempre coisas novas para descobrir e apreciar a este nível. É um mundo que pode ser fascinante!
Por outro lado, precisamente por não ser capaz de criar nada musical na verdadeira acepção do termo, a minha admiração é ainda maior! Pude comprovar por diversas vezes o quão difícil é, por exemplo, aprender a tocar piano. Tenho o maior respeito por todos quantos dedicam a sua vida à música!

Não resisto a colocar aqui mais uma peça musical de Chopin (um dos compositores que muito aprecio, entre outros). Algumas das minhas simpáticas companheiras de blog indicaram que gostam muito, sobretudo, dos Nocturnos. Por isso... um Nocturno de Chopin! Por mim, embora goste de quase tudo, a minha preferência maior oscila entre os Nocturnos e os Prelúdios.



Sobre este Nocturno:
" O Nocturno em Dó menor, Op.48, nº1, é o mais grandioso, e sem dúvida o melhor, de todos os Nocturnos de Chopin. Aliás, em muitos aspectos assemelha-se mais a uma Balada. Kullak considerava que «a estrutura e o conteúdo poético...fazem dele o mais importante de quantos Chopin criou; o tema principal é uma expressão magistral de uma dor grande e poderosa, causada, por exemplo, por uma grande desgraça acontecida na nossa pátria amada.»
Chopin era particularmente minucioso quanto à forma como deviam ser tocados os exigentes quatro primeiros compassos. «Nunca ficava satisfeito», relata Lenz, que finalmente conseguiu «ao cabo de prolongados esforços» tocar os dois primeiros compassos a contento do compositor, antes de ser de novo posto à prova com os dois seguintes."
in Chopin, Vida e Obra, Jeremy Nicholas

sábado, 21 de abril de 2007

Chopin



"Chopin propõe, supõe, insinua, seduz,
persuade; quase nunca afirma."
André Gide


Eis como Chopin seduz e persuade (neste caso, eu diria que, excepcionalmente, até afirma!), por exemplo, com este estudo conhecido por "Revolucionário":




"A primeira série de pequenos Estudos ("Études"), Op.10, de Chopin, constitui, juntamente com o segundo conjunto de doze, Op.25, publicado quatro anos depois (1837), a Magna Carta da técnica pianística romântica. Muitos livros de estudos para piano tinham sido publicados antes destes, sendo que cada um deles era dedicado a um aspecto particular da execução, tais como escalas, arpeggios, tercinas e oitavas. O próprio Chopin deveria conhecer bem os estudos de Czerny, Clementi e Cramer. O que faz com que os seus se destaquem é que, embora cada um deles constitua um desafio técnico particular, este está embebido na poesia da música.

Os Ops.10 e 25 de Chopin, tais como são conhecidos no meio, estenderam o alcance do piano até aos limites da tonalidade e ao mesmo tempo revolucionaram a técnica de dedilhação. Algumas das audaciosas harmonias eram conceitos novos em termos de som, tendo muitas delas vindo a constituir mais tarde a base do Impressionismo. De todos os estudos para piano, os de Chopin são simultaneamente os mais exigentes para quem os toca (com a possível excepção dos de Liszt) e os mais gratificantes para quem os ouve.

Os Estudos de Chopin foram a princípio criticados por serem demasiado difíceis. Moscheles queixava-se de que os seus dedos tropeçavam constantemente em modulações difíceis, nada artísticas e, no seu entender, incompreensíveis. O crítico e escritor alemão Ludwig Rellstab (1799-1860) observava:
«Quem tenha os dedos tortos pode endireitá-los ensaiando estes Estudos; mas quem não tenha não deve tocá-los, a menos que tenha um cirurgião de prevenção.»

Hoje, o Op.10 e o Op.25, juntos, constituem uma das pedras angulares da literatura para piano, de rigueur para qualquer pianista profissional conquistar e absorver. (...); o n.º 12 é o "Revolucionário", inspirado, segundo se diz, pela queda de Varsóvia em 1831, se bem que uma geração muito posterior tenha ficado a conhecê-lo por um disco infantil de 1957, Sparky's Magic Piano."
in Chopin, Vida e Obra, Jeremy Nicholas

Poesia, Piano e o Pianista


O Pianista

Senta-se imita
o autor Os
holofotes douram-no
é a vítima
dos expansivos círculos do som

Em torno dele o som é como
um laço
Está sentado na margem do
teclado detendo com os braços
a força ameaçadora das águas

Gastão Cruz
Poemas de Gastão Cruz ditos por Miguel Cintra
Assírio e Alvim, Lisboa 2005

(imagem: Abstract Piano, Paul Brent)

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Águas de Março ( ou de Abril)



Inesquecível Elis Regina!
Hoje, gosto de pensar que as nossas águas de Abril "fecham o Inverno"...

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Da Música


Em vez da Festa da Música, temos, então, os Dias da Música! A pequena festa, este ano, é dedicada em especial ao instrumento solista por excelência da música ocidental: o piano. Parece-me uma boa escolha e o programa promete.
Todos os anos marco presença mas este ano ainda não sei se irei, com muita pena minha. No entanto, não está excluída a hipótese, felizmente! Não indo, farei questão de acompanhar o evento de todas as outras formas possíveis. É uma oportunidade sempre excelente para "beber" a melhor música ao vivo e a cores! Tal como para conhecer alguns dos melhores artistas da actualidade na área da música clássica. Mas este ano (novidade!) o pequeno festival fará também uma incursão pelo jazz e pela música improvisada.
É de destacar a presença de Bernardo Sassetti, por exemplo. Mas estarão presentes, igualmente, muitos outros imperdíveis.

Mais informação: é só clicar aqui


quarta-feira, 18 de abril de 2007

Top 5 Livros-Autores

Em resposta a um desafio lançado pelo Branco.Azul, aqui está, finalmente, o meu Top de 5 Livros-Autores (mais vale tarde que nunca!, certo?).
Foi-me muito difícil fazer esta pequena selecção, tantos são os que gostaria de destacar na minha afeição literária... Mas optei por aqueles aos quais atribuo um significado pessoal especial. Independentemente disso, cada um deles, à sua maneira, possui um valor e um talento extraordinários!


"Se ponho em causa este retrato optimista de Sachs durante aqueles anos, é só porque sei o que se passou mais tarde. Mudanças enormes ocorreram dentro dele e, embora seja muito simples localizar o momento em que essas mudanças começaram - focalizá-lo na noite do acidente e responsabilizar aquele acontecimento bizarro de tudo -, eu já não acredito que essa explicação seja adequada. Será possível alguém mudar numa noite? Poderá um homem adormecer com uma personalidade e depois acordar com outra? Talvez, mas eu não estaria tão inclinado a apostar. Não digo que o acidente não foi grave, mas há mil maneiras diferentes de uma pessoa reagir a um contacto com a morte. O facto de Sachs ter reagido da maneira como reagiu não significa, na minha opinião, que ele tenha tido voto na matéria. Pelo contrário, considero-a um reflexo do seu estado de espírito antes de o acidente ter tido lugar. Por outras palavras, embora parecesse que Sachs andava mais ou menos bem naquela altura, embora ele mal tivesse consciência da sua própria angústia durante os meses e os anos que precederam aquela noite, estou convencido de que andava muito mal. Não tenho qualquer prova que sustente esta afirmação, excepto a prova a posteriori. A maior parte das pessoas ter-se-iam considerado cheias de sorte por sobreviver ao que aconteceu a Sachs e depois não pensariam mais nisso. Mas Sachs não esqueceu, e esse facto - ou, mais precisamente, o facto de não ter podido esquecer - sugere que o acidente não o modificou, antes tornou visível o que havia estado anteriormente escondido. Se estou enganado em relação a isto, então tudo o que escrevi até aqui não tem valor, é uma simples acumulação de conjecturas irrelevantes. Se calhar a vida de Sachs partiu-se em duas naquela noite, dividindo-se distintamente em antes e depois - neste caso, tudo o que vem antes pode ser apagado da história. Mas, se isso for verdade, significaria que o comportamento humano não faz sentido. Significaria que nunca poderemos compreender nada de nada."
Paul Auster, Leviathan



"Quando bruscamente, nas trevas da noite,
Ouvires passar o tropel invisível das vozes puras,
O coro celeste das sublimes harmonias,
Abandonado definitivamente pela fortuna,
Desfeitas em pó as últimas esperanças,
Esvaída em fumo uma vida de desejo.
Ah, não sucumbas lastimando um passado
Que te traiu, mas como um homem
Que se prepara há muito tempo,
Despede-te corajosamente
De Alexandria que te abandona.
Não te deixes iludir e não digas
Que foi sonho ou um logro dos teus sentidos,
Deixa as súplicas e os lamentos para os poltrões,
Abandona vãs esperanças,
E como um homem que se prepara há muito tempo,
Resignado, altivo, como te compete
E a uma cidade como esta,
Abre a janela e olha para a rua
E bebe a taça inteira da amargura
E a derradeira embriaguez da multidão mística
E despede-te de Alexandria que te abandona.
Lawrence Durrell, in O Quarteto de Alexandria, Justine



" A arte dionisíaca exerce, pois, uma dupla influência sobre a faculdade artística do apolíneo: a música incita à visão simbólica da generalidade dionisíaca e, ao mesmo tempo, faz emergir a imagem simbólica com a sua significação mais elevada. (...) a música tem a magia de fazer nascer o mito, o mais significativo dos símbolos, e precisamente o mito trágico: o mito que exprime, em símbolos analógicos, a sabedoria dionisíaca. (...) então, onde deveremos procurar esta expressão senão na tragédia, ou, de uma maneira mais geral, na noção de trágico?
(...) «Creio na vida eterna», eis o que proclama a tragédia, mas é a música que na sua essência é a ideia imediata desta vida."
Nietzsche, A Origem da Tragédia




" O conceito segundo o qual todo o ser racional deve considerar-se como legislador universal por todas as máximas da sua vontade para, deste ponto de vista, se julgar a si mesmo e às suas acções, leva a um outro conceito muito fecundo que lhe anda aderente e que é o de um reino dos fins.
Por esta palavra
reino, entendo eu a ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns. (...)
Seres racionais estão, pois, todos submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si. (...)
No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
I.Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes



"Quando o pai morreu, pareceu a si própria que a sua dor não correspondia àquele amor que perdurava nela com uma intensidade que minorava, até, a sensação de perda e de fim. Longe de chorar a sua pena, antes uma grande paz lhe penetrou no coração. Em breve se apresentava faceira e alegre, e o seu carácter abandonou aquela característica de agressividade que tanto desesperava Maria. Porém, o seu espírito, mais do que nunca, vivia a dedicação absoluta do pai, que, tendo morrido, se lhe agregava inteiramente, já não era o homem disperso por todos os prazeres, partilhando amores e cuidados de tantos mais, pertencendo ao mundo e querendo-lhe, acima de tudo, com uma terrível e egoísta paixão. Agora, era apenas dela, nela estava com o seu olhar penetrante e doce e para sempre havia de depender de Quina, da profusa chama da sua recordação."
Agustina Bessa-Luís, A Sibila

domingo, 15 de abril de 2007

Signor Rossi Vs. De-Phazz - Viva La Felicita

Democracia(s)

Por todo o lado ouvimos a palavra democracia. Parece-me que à semelhança da palavra amor anda bastante maltratada.
Estamos no mês de Abril e em breve comemoramos (assim será?) uma data que não deveríamos esquecer jamais. Mas que parece ter passado a ser apenas mais um feriado nacional desprovido do seu real significado. Democracia e liberdade estão intimamente ligadas. O 25 de Abril é o Dia da Liberdade. Logo, um dia que é também da democracia.
O passado deveria iluminar o caminho do futuro e é fácil deixar cair no esquecimento factos passados que por certo não gostaríamos de ver ressuscitados, a não ser como memórias instrutivas. A democracia pode ter muitos defeitos mas é ainda o único sistema onde é possível ser um pouco mais livre. Porque da liberdade há sempre muito a dizer e ainda mais a desejar. No essencial, podemos estar certos de pouco acerca dela. Talvez apenas de duas coisas: não é algo que possa existir imutável nem algo fácil. Tal como, há muito tempo atrás, um antigo filósofo disse: "Não podemos banhar-nos duas vezes na água do mesmo rio". Talvez nunca sejamos livres duas vezes da mesma maneira. Quando mais toda uma infinidade de vezes... Porque tudo flui e tudo está sujeito a um constante movimento...

As democracias hoje dificilmente poderão manter-se estáticas e inevitavelmente terão que se renovar. Resta saber como... A principal questão que se coloca é como chamar todos a intervir. Porque em democracia todos têm que colaborar. Mesmo nas democracias representativas como as nossas, todos estamos envolvidos. Ou será que muita gente prefere que outros (alguns) tomem conta dos assuntos sem qualquer contribuição da maioria?

A democracia no geral depara-se com um contrasenso do qual todos podem estar mais ou menos conscientes: se promove a liberdade, promove a possibilidade de permitir que lhe sejam feitos os mais diversificados tipos de ataques. Existirá forma de promover a liberdade mais digna e mais aberta do que esta? Um sistema que em virtude da sua própria essência se testa a si próprio constantemente, enfrentando a expressão livre de todos, não só dá espaço a todos como tem, assim, oportunidade de corrigir os inúmeros defeitos de que está impregnado. Evidentemente que liberdade não deve confundir-se com permissividade total e muito menos com um alheamento irresponsável que põe em risco a protecção que o Estado deve proporcionar a todos. Uma das razões que está na origem do famoso contrato social. As sociedades democráticas deveriam ser um espaço seguro para o exercício da liberdade mas não uma pseudo-segurança perfeita onde se elimina a liberdade para não se correrem riscos.

Não, não creio que a solução para os grandes problemas das democracias e suas liberdades esteja numa simples repressão das mesmas. Talvez numa regulamentação do exercício da liberdade. Regulamentação essa para a qual todos poderão intervir no que toca à sua definição.
Quando se fala em repressão das liberdades, é preciso saber qual o "espírito da lei". E aí o que não falta é ambiguidade...
Por outro lado, uma questão interessante é a de saber até que ponto as sociedades actuais são, de facto, sociedades democráticas, como se auto-intitulam. Talvez a democracia esteja em fase de metamorfose (positiva?) ou talvez ainda se encontre num estado semi-híbrido, onde já não é o que começou por ser e ainda não é o que quer ser. Mas qualquer coisa de intermédio, como diria o poeta!

Segundo dizem, a esperança é a última coisa a morrer e, de facto, eu ainda tenho esperança e ainda acredito no progresso, mesmo que esteja tudo muito aquém dos mais nobres objectivos. A sociedade democrática é ainda a sociedade da esperança onde podem germinar e crescer os mais elevados ideais. Depende de todos nós colaborar para a sua concretização, um pouco mais cada dia que passa e onde se edifica o futuro. Depende da nossa vontade.

É por isso que assinalo uma excelente leitura, não só interessante mas urgente, que é de ler e mesmo de reler. Não a única a propósito, certamente! Mas uma das que não deveríamos deixar escapar:

"O Mundo na Era da Globalização" de Anthony Giddens - conjunto de textos que já tem alguns anos e que, no entanto, permanece de extrema actualidade.
Neste pequeno conjunto de textos, não só nos alerta para uma série de aspectos interessantes acerca da democracia actual como chama a atenção para muitas tarefas que temos pela frente se queremos uma vida melhor. E, sobretudo, a minha simpatia por este senhor resulta da sua visão positiva do futuro, apresentando princípios orientadores concretos que nos surgem como "luz ao fundo do túnel". Porque, mais uma vez, depende de nós...

Uma pequena amostra do livro:

"Agora, há um democrata em cada pessoa, mas sabemos que nem sempre foi assim. No século XIX, as ideias democráticas foram ferozmente combatidas pelas elites dominantes e pelos grupos dirigentes, que muitas vezes se referiam a elas com desdém (...). O direito de voto era privilégio de uma minoria da população. (...)
(...) Antes da I Grande Guerra só havia quatro países em que as mulheres tinham direito de voto: Finlândia, Noruega, Austrália e Nova Zelândia. Na Suiça, as mulheres só conseguiram votar a partir de 1974."

" A divulgação de tantos escândalos de corrupção nos meios políticos durante os anos mais recentes não aconteceu por acaso. (...) Duvido que a corrupção nos países democráticos seja maior do que antigamente. O que se passa é que, numa sociedade aberta à informação, a corrupção é mais visível; a fronteira entre o que é considerado corrupção e o que não o é também se alterou."

" A democratização da democracia depende também do fomento de uma profunda cultura cívica. (...) A construção da democracia das emoções é um dos aspectos da cultura cívica progressiva. A sociedade civil é o fórum onde as atitudes democráticas, incluindo a tolerância, têm de ser cultivadas. A componente civil pode ser estimulada pelos governos para, por seu turno, se tornar a base em que eles se apoiam."

" Não podemos deixar os meios de comunicação social fora da equação. Os media, especialmente a televisão, têm uma relação equívoca com a democracia. Por um lado, como já acentuei, a emergência da sociedade global da informação é uma poderosa força de democratização. Por outro, a televisão e os outros media, graças à vulgarização constante e à personalização das questões políticas, tendem a destruir o próprio espaço público de debate que abrem. Além disso, o domínio crescente dos media pelas multinacionais gigantes significa que uns quantos magnatas, não sujeitos ao sufrágio do eleitorado, conseguem exercer um poder enorme."

" Em vez de vermos a democracia como uma planta frágil, que é fácil calcar com os pés, talvez devêssemos considerá-la uma planta robusta, capaz de crescer mesmo quando o solo é maninho. Se o meu argumento está correcto, a expansão da democracia está interligada com as mudanças estruturais da sociedade mundial. Nada se consegue sem luta. Mas a melhoria da democracia a todos os níveis é um combate que vale a pena travar, pois pode ser bem sucedido. Este nosso mundo, que parece desatinado, não precisa de menos governo, mas de mais governo - e isso é algo que só as instituições democráticas podem proporcionar."
Anthony Giddens, "Democracia" in O Mundo na Era da Globalização

(a fotografia no topo do post é de Anthony Giddens e a fotografia ao centro é da autoria de Robert Madden)

Para mais informação sobre este autor, basta clicar aqui
ou ainda aqui

sexta-feira, 13 de abril de 2007

O Belo



Barry Lyndon de Stanley Kubrick

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Sobre blogs...

Parece inevitável reflectir um pouco sobre a blogosfera e a sua actividade. O crescimento acelerado desta forma de comunicação e de intervenção na sociedade impede um possível alheamento face a este fenómeno. Um blog pode começar simplesmente como uma pequena brincadeira e, possivelmente, este seu aspecto lúdico nunca deverá estar ausente na sua produção. No entanto, pode igualmente ter outras funções. E tem-as certamente. Daí que inúmeras questões lhe estejam associadas.
É relevante, por exemplo, a implicação que o universo de blogs tem para uma redefinição das sociedades democráticas cada vez mais globalizadas. Assim como para um novo conceito de cidadania. Actualmente, cada cidadão tem ou pode ter o seu "espaço". Por outro lado, a relação imediata e mesmo instantânea com as imagens modifica aqui o acto de escrever e cada vez mais o próprio acto de pensar. Numa nova interacção.

Estou certa de que quase todos os grandes filósofos do passado teriam um blog se fosse esta a sua época. Com as devidas diferenças...
O que pensa deste fenómeno da blogosfera um filósofo actual? Refiro, aqui, a opinião de Nigel Warburton como exemplo de atitude face às implicações deste novo universo para a área da filosofia. Parece-me um caso nítido de um olhar aberto e positivo face às mudanças.

As palavras que transcrevo de N. Warburton foram recolhidas num artigo da revista «The philosophers'magazine». Diz ele:

" (...) a way of publishing my thoughts on various matters instantly, archiving old pieces of writing, letting people know what i am up to. It is also a way of making myself open to receiving emails, possibly opening up debates and helping people find other resources on a range of topics. (...) I try to put new entries on the weblog at least three times a week, so this is quite a good discipline for keeping me active, and i find myself writing down notes and catching ideas that otherwise might have been more ephemeral(...)."



Nigel Warburton

De acordo com o seu parecer, parece difícil que outro media possa substituir, exactamente da mesma maneira, o papel de um blog.
Afirma ainda, de acordo com o mesmo artigo, antes referido:

"Instant publications of drafts of ideas can be stimulating; archiving of articles can be useful. I like blogs which give you leads to other interesting things on the same topic - so reading blogs can stimulate you to thoughts you might not otherwise have had and resources (and even people) you didn't know existed. What is great about a blog is that you can link up all kinds of things that might otherwise not be noticed: (...). And of course, if, like me, you are interested in the visual arts, there is huge potential for linking or displaying images that complement your writing, or even drive the blog."

Para mais informação sobre Nigel Warburton, é de visitar o seu blog, «virtual philosopher», para o que basta clicar aqui

(a fotografia de Nigel Warburton foi obtida no blog do filósofo)

Para mais informações e consulta do blog da «The philosophers'magazine» basta clicar aqui

ou aqui

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Da Poesia



Elementário

O verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que pode ser dito a quem
se não quer dizer

isto, claro, partindo do princípio
de que há um sentido das palavras,
verdadeiro, um poema e um
a quem se queira dizer.

in Os Fantasmas Inquilinos, Daniel Jonas

(desenho de Quentin Blake, The Corvine Reader)

segunda-feira, 9 de abril de 2007

A Imitação da Rosa


Dalí, A Rosa Meditativa


" Abriu os olhos, e como se fosse a sala que tivesse tirado um cochilo e não ela, a sala parecia renovada e repousada com suas poltronas escovadas(...). Oh! Como era bom rever tudo arrumado e sem poeira, tudo limpo pelas suas próprias mãos destras, e tão silencioso, e com um jarro de flores, (...).

- Ah, como são lindas, exclamou seu coração de repente um pouco infantil. Eram miúdas rosas silvestres que ela comprara de manhã na feira, (...).

Nunca vi rosas tão bonitas, pensou com curiosidade. E como se não tivesse acabado de pensar exactamente isso, vagamente consciente de que acabara de pensar exactamente isso e passando rápido por cima do embaraço em se reconhecer um pouco cacete, pensou numa etapa mais nova de surpresa: «Sinceramente, nunca vi rosas tão bonitas.» Olhou-as com atenção. Mas a atenção não se podia manter muito tempo como simples atenção, transformava-se logo em suave prazer, e ela não conseguia mais analisar as rosas, era obrigada a interromper-se com a mesma exclamação de curiosidade submissa: como são lindas!

(...) Como são lindas, pensou Laura surpreendida.
Mas, sem saber porquê, estava um pouco constrangida, um pouco perturbada. Oh! Nada de mais, apenas acontecia que a beleza extrema incomodava.
(...)

Laura foi buscar uma velha folha de papel de seda. Depois tirou com cuidado as rosas do jarro, tão lindas e tão tranquilas, com os delicados e mortais espinhos. Queria fazer um ramo bem artístico. E ao mesmo tempo se livraria delas. E poderia se vestir e continuar seu dia. Quando reuniu as rosinhas húmidas em bouquet, afastou a mão que as segurava, olhou-as a distância, entortando a cabeça e entrefechando os olhos para um julgamento imparcial e severo.
E quando olhou-as, viu as rosas.
E então, incoercível, suave, ela insinuou em si mesma: não dê as rosas, elas são lindas.

Um segundo depois, muito suave ainda, o pensamento ficou levemente mais intenso, quase tentador: não dê, elas são suas. Laura espantou-se um pouco: porque as coisas nunca eram dela.
Mas estas rosas eram. Rosadas, pequenas, perfeitas: eram. Olhou-as com incredulidade: eram lindas e eram suas. Se conseguisse pensar mais adiante, pensaria: suas como nada até agora tinha sido.

E mesmo podia ficar com elas, pois já passara aquele primeiro desconforto que fizera com que vagamente ela tivesse evitado olhar de mais as rosas.
Por que dá-las, então? Lindas e dá-las? Pois quando você descobre uma coisa boa, então você vai e dá? Pois se eram suas, insinuava-se ela persuasiva sem encontrar outro argumento além do mesmo que, repetido, lhe parecia cada vez mais convincente e simples. Não iam durar muito - por que então dá-las enquanto estavam vivas? O prazer de tê-las não significava grande risco - enganou-se ela -, pois, quisesse ou não quisesse, em breve seria forçada a se privar delas, e nunca mais então pensaria nelas, pois elas teriam morrido - elas não iam durar muito, por que então dá-las? O facto de não durarem muito parecia tirar-lhe a culpa de ficar com elas, numa obscura lógica de mulher que peca. (...) Olhou-as com enlevo, pensativa, profunda.
E, sinceramente, nunca vi na minha vida coisa mais perfeita.
(...)

Mas com as rosas desembrulhadas na mão ela esperava. Não as depunha no jarro, não chamava Maria. Ela sabia porquê. Porque devia dá-las. Oh, ela sabia porquê.
E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se «ser». Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita. A uma coisa bonita faltava o gesto de dar. Nunca se devia ficar com uma coisa bonita, assim como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração. (Embora, se ela não desse as rosas, nunca ninguém iria jamais descobrir? Era horrivelmente fácil e ao alcance da mão ficar com elas, pois quem iria descobrir? E elas seriam suas, e as coisas ficariam por isso mesmo e não se fala mais nisso...)

Então? E então? indagou-se vagamente inquieta.
Então, não. O que devia fazer era embrulhá-las e mandá-las, sem nenhum prazer agora; embrulhá-las e, decepcionada, mandá-las; e espantada ficar livre delas. Também porque uma pessoa tinha que ter coerência, pensamentos deviam ter congruência: se espontaneamente resolvera cedê-las a Carlota, deveria manter a resolução e dá-las. Pois ninguém mudava de ideia de um momento para outro.

Mas qualquer pessoa pode se arrepender!, revoltou-se de súbito. Pois se só no momento de pegar as rosas é que notei quanto as achava lindas, pela primeira vez na verdade, ao pegá-las, notara que eram lindas. Ou um pouco antes? (E mesmo elas eram suas.) (...) ela não era obrigada a ter coerências, não tinha que provar nada a ninguém e ficaria com as rosas. (E mesmo - e mesmo elas eram suas.)
(...)

Olhou-as, tão mudas na sua mão. Impessoais na sua extrema beleza. Na sua extrema tranquilidade perfeita de rosas. Aquela última instância: a flor. Aquele último aperfeiçoamento: a luminosa tranquilidade.
Como uma viciada, ela olhava ligeiramente ávida a perfeição tentadora das rosas, com a boca um pouco seca olhava-as.
Até que, devagar, austera, enrolou os talos e espinhos no papel de seda. (...) Vagamente, dolorosa, olhou-as, assim distantes como estavam na ponta do braço estendido - e a boca ficou ainda mais enxuta, aquela inveja, aquele desejo. Mas elas são minhas, disse com enorme timidez.

Quando Maria voltou e pegou o ramo, por um mínimo instante de avareza Laura encolheu a mão retendo as rosas um segundo mais consigo - elas são lindas e são minhas, é a primeira coisa linda e minha!, (...) (Ela poderia pelo menos tirar para si uma rosa, nada mais que isso: uma rosa para si. E só ela saberia, e depois nunca mais, oh, ela se prometia que nunca mais se deixaria tentar pela perfeição, nunca mais!)

E no segundo seguinte, sem nenhuma transição, sem nenhum obstáculo - as rosas estavam na mão da empregada, não eram mais suas, como uma carta que já se pôs no correio!, não se pode mais recuperar nem riscar os dizeres!, não adianta gritar: não foi isso o que quis dizer! Ficou com as mãos vazias mas seu coração obstinado e rancoroso ainda dizia: «Você pode pegar Maria nas escadas, você bem sabe que pode, e tirar as rosas de sua mão e roubá-las.» Porque tirá-las agora seria roubar. (...)

Então a porta da rua bateu.
Então devagar ela se sentou calma no sofá. Sem apoiar as costas. Só para descansar. Não, não estava zangada, oh nem um pouco. Mas o ponto ofendido no fundo dos olhos estava maior e pensativo. Olhou para o jarro. «Cadê minhas rosas?», disse então muito sossegada.

E as rosas faziam-lhe falta. Haviam deixado um lugar claro dentro dela. Tira-se de uma mesa limpa um objecto e pela marca mais limpa que ficou então se vê que ao redor havia poeira. As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro dela. No seu coração, aquela rosa, que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar ninguém no mundo, faltava. Como uma falta maior.

Na verdade, como a falta. Uma ausência que entrava nela como uma claridade. E também ao redor da marca das rosas a poeira ia desaparecendo. (...) E na clareira as rosas faziam falta. «Cadê minhas rosas?», queixou-se sem dor alisando as preguinhas da saia.
(...) Já que não estava mais cansada, ia então se levantar e se vestir. Estava na hora de começar.
Mas, com os lábios secos, procurou um instante imitar por dentro de si as rosas. Não era sequer difícil.
(...)

Armando abrira a porta.
Calma e suave, ela disse:
- Voltou, Armando. Voltou.
(...)
- Voltou o quê, disse ele de repente com dureza.
- Não pude impedir, disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava na sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir, repetiu, entregando-lhe com alívio a piedade que ela com esforço conseguira guardar até que ele chegasse. Foi por causa das rosas, disse com modéstia.
(...)
Ela estava sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável. Com timidez e respeito, ele a olhava. Envelhecido, cansado, curioso. Mas não tinha uma palavra sequer a dizer.
Da porta aberta via sua mulher que estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranquila como um trem. Que já partira."

in A Imitação da Rosa, Clarice Lispector

nina simone - my baby just cares for me

sexta-feira, 6 de abril de 2007


PÁSCOA FELIZ!

Flores, Picasso

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Da Música (ainda...)

É para assinalar aqui uma descoberta mais recente a nível musical e num registo completamente diferente do anterior trabalho que referi (Christina Pluhar) :
Um álbum que considero absolutamente extraordinário!, "From the Plantation to the Penitentiary" de Wynton Marsalis.
Em comentário que pode ser lido no folheto da caixa do cd, é de citar, por exemplo, o seguinte:

"ART EVOLVES WITH SOCIETY AND IS INFORMED BY SOCIETY, but an artist should never be so intimidated by the need for social acceptance that he or she will change the personal discovery of a vital truth just to fit in with vaporous trends. (...)
Wynton Marsalis is one of the most important artists of our moment because the quality and range of his talent has few peers and his integrity is exceeded by no one. (...) this contemporary son of New Orleans made a name for himself (...). Marsalis reestablished the power and elegance of jazz in his time and for his generation and for all generations that came before or after his. This has now been going on for over twenty years and it was no small achievement when it began, and the opposition to what Marsalis went after was met both with great acceptance and great rejection. None of that stopped him from going his own way and from carrying much of the jazz world with him.




Wynton Marsalis

There were still problems because it sometimes seems to many that the balance achieved by integrity is impossible; the consequence is that the very idea of equilibrium starts to take on the form of a bitter myth due to the stubborn certitude of the protean opposition, which is almost as wily and flexible as art itself. One strain of opposition has evolved from the condition that began in 1619 when twenty African slaves arrived in Jamestown, Virginia. Neither those slaves nor anyone else knew that plantation bondage would last for over two hundred years and that 600,000 people would have to die in a bloody civil war before the slaves were freed into an ambiguous fate. That's how hard-headed the opposition to abolition was.
That is also why the certainty of inevitable freedom was made clear in the only way it could by Abraham Lincoln, (...). In his Second Inaugural Address, the president of the United States expressed the heroic and collective sense of democracy that he knew was the only solution. No, Lincoln did not bite his tongue on March 4, 1865 when he said, «Fondly do we hope, fervently do we pray, that this mighty scourge of war may speedly pass away. Yet, if God wills that it continue until all the wealth piled by the bondsman's two hundred and fifty years of unrequited toil shall be sunk, and until every drop of blood drawn with the lash shall be paid by another drawn with the sword, as was said three thousand years ago, so still it must be said 'the judgments of the Lord are true and righteous altogether'.»
The level of collective commitment made clear by Lincoln is what we need today, across all lines of political and ethnic distinction, because far too many of the descendents of those chattel now live in a variation on plantation life that has become a national presence so pernicious that it inspired the title track of this recording. (...)
As usual Marsalis continues to prove his preeminence as a trumpet player and a leader of men, this time bringing along a new singer that he is as proud of as he is of the remarkable instrumentalists who move on up to higher ground with him. (...)."
Stanley Crouch

Uma amostra deste trabalho de Wynton Marsalis e que é o tema de abertura do álbum:
"From the Plantation to the Penitentiary"

A letra (provocadora, como praticamente todas as das outras faixas):

"From the Plantation to the Penitentiary
From the yassuh boss to the
ghetto minstrelsy
In the heart of freedom...in chains
In the heart of freedom...insane
In the heart of freedom...insane
In the heart of freedom...in chains

From the field hand cry
To the ten to twenty-five
From the 'sold-off' men
To the raised by next-of-kin
In the cause of freedom and shame
In the cause of freedom and game

From the 'no book rules'
To the raggly public schools
From the coon and shine
To the unemployment line
In the land of freedom...in chains
In the land of freedom...insane

From the work long days
To the dope and drinking craze
From the stock in slaves
To the booming prison trade
In the name of freedom...insane
In the name of freedom...and shame
In the heart of freedom...in chains
In the heart of freedom...insane

A música:



Wynton Marsalis é talvez o músico de jazz mais importante e conceituado da actualidade (discutível, como quase tudo). Tem também inúmeros trabalhos enquanto instrumentalista na área da música clássica. É o Director Musical de Jazz no Lincoln Center (for the Performing Arts), New York. A par de tudo isto, é um músico muito polémico, alvo de inúmeras críticas. Considerado um virtuoso do trompete, é igualmente tido por muitos como um "purista" do jazz. Oriundo de New Orleans, vários irmãos seus estão também ligados à música. Durante a sua juventude, integrou os Jazz Messengers de Art Blakey com quem sentiu afinidades no estilo de jazz que pretendia desenvolver. Efectivamente, Art Blakey é um dos meus músicos de jazz preferidos. Daí provavelmente a minha forte adesão ao estilo de Wynton Marsalis.

Este músico que sempre procurou criar um estilo de jazz bastante fiel à tradição, apresenta, no entanto, neste seu último trabalho, um tema com inspiração de música rap! Porquê? Pergunta inevitável. Aliás, todo o álbum revela uma série de elementos com origens musicais distintas, em fusão com o melhor da tradição no jazz. Parece-me provável que Wynton Marsalis tenha sentido necessidade de evoluir no sentido de acompanhar a multiculturalidade que é a marca das sociedades actuais a vários níveis, em particular, a nível musical, integrando na sua criação artística influências provenientes de diversas subculturas. A sua abertura ao rap é exemplo disso. Um artista só pode evoluir acompanhando a evolução da sociedade. Por outro lado, existe um actual forte objectivo de intervenção na vida política e social norte-americana, por parte de W.Marsalis. Em especial, no que se refere às questões ligadas às diferenças étnicas que caracterizam esta sociedade (assim como a nossa!). E trata-se de chamar todos a intervir!

Digamos que talvez as críticas, relativas ao facto de Marsalis se afastar do chamado "free jazz", o tenham levado a suplantar-se, apresentando este trabalho bastante mai
s inovador, aspecto a que se alia a extrema qualidade de todos os músicos envolvidos, assim como uma concepção e um conhecimento do jazz repletos de sabedoria.

Quanto a mim, nada tenho contra o "free jazz", embora nem todo seja da minha predilecção. No entanto, há muitos destes músicos que admiro e dos quais gosto. A minha estética um pouco classicista quanto aos aspectos formais, conduz-me, no entanto, por exemplo, a Wynton Marsalis... E a criatividade não reside apenas em descobrir novas formas mas em explorar igualmente a partir dos conteúdos. Parece-me...

De todo o modo...Isto é JAZZ!

E o que quer dizer W. Marsalis com este título "Da Plantação para a Penitenciária"? Bom...tanto é possível discorrer sobre... Mas parece mais ou menos claro considerar que, hoje, muitos dos que estavam nas plantações (ou os que deles descendem), estão agora nas ruas e nas prisões. É preciso que todos pensem nisso, inclusive os próprios que lá se encontram. Porque estes não terão seguido a via mais adequada para a sua efectiva libertação. Em poucas palavras, é preciso fazer alguma coisa para mudar esta situação.

Para mais detalhes interessantes e músicas de Wynton Marsalis, clicar aqui

terça-feira, 3 de abril de 2007

Da Música

L'Arpeggiata - Christina Pluhar
"Los Impossibles"

Músicas maravilhosas e que nos remetem para as influências do passado, são todas as que se podem ouvir neste trabalho de Christina Pluhar. A meu ver, para além deste projecto ter tido como resultado uma pequena maravilha musical, encerra em si uma interessante história.
" Los Impossibles
A ideia deste projecto nasceu da simples curiosidade: existe no México um manuscrito, escrito no início do século XVIII pelo guitarrista barroco espanhol Santiago de Murcia, que contém uma peça intitulada Los Impossibles. Trata-se de uma romanesca do tipo das que se encontram a partir do século XVI em Itália,em Espanha e em Portugal. O seu tema está ainda presente actualmente na música tradicional do México. A minha curiosidade e a minha fascinação foram atraídas em primeiro lugar pelo facto de uma melodia que soube abrir um caminho entre a música tradicional da sua época e a música erudita, assim como viajar no espaço de um século, desde Itália, via Espanha e Portugal, até ao México, estar viva ainda hoje na música de tradição oral da América Latina.

Esta curiosidade levou-me a explorar a música antiga e tradicional de Espanha, de Portugal e da América latina à procura de um elo que pudesse ligar os diversos estilos e épocas. E este elo encontra-se nos traços rítmicos e harmónicos , na presença de certos instrumentos cujas origens remontam ao barroco e na existência, quer na música antiga "erudita", quer nas músicas tradicionais daquela época, assim como nas dos nossos dias, de uma mistura de inúmeras influências e culturas. A procura de traços comuns e das origens, assim como a fascinação pelas misturas e pelos laços multiculturais, serviram-nos de guia ao longo de todo este projecto: um percurso apaixonante através dos continentes e dos séculos."
Christina Pluhar, Paris, 2006

Uma pequena amostra deste projecto musical que me encanta desde há uns meses atrás... Faixa nº9 - La Petenera. Faz parte da minha playlist, sem dúvida!

A letra:

La Petenera

Una donzela se fue
a vivir al mar profundo,
pero anteanoche soñé
que en algún lugar del mundo
cantando la encontraré.

iAy! sólita soledad,
soledad que yo quisiera
que usted se volviera anona
pá que yo me la comiera,
madurita madurona,
que del árbol se callera.

Quien le puso Petenera
no la supo bautizar,
le hubieran puesto siquiera
la musa de mi cantar
y en mi corazón viviera.

iAy! sólita soledad,
soledad que yo quisiera
que se formara un columpio,
iAy! sólita ya lo ves,
para que yo me meciera.

A música:




Para mais detalhes sobre Christina Pluhar, clicar aqui

domingo, 1 de abril de 2007

Ficções transparentes

Olhei...o mundo chorava de falta e a falta chorava por não ter.Os telhados das casas deixavam tombar as lágrimas do mundo, por nada haver. As árvores, despidas de tudo, fingiam respiração de um ar oco e pesado de nadas. O céu, sim, tinha, tinha lágrimas infinitas carregadas do brilho das estrelas pela noite vazia ou pelo brilhante laranja do sol que ofuscava a branca luz das gotículas desta transparente água salgada, enfim poisada no rosto repleto da desilusão. E através dela, os meus olhos viam, viam o mundo chorado, sem nada para semear ou transportar.
E as estradas eram o vazio a percorrer eternamente, sem possível fim. Submersas por rios de lágrimas choradas antigamente, daquelas secretas que alguém em tempos criou sem dizer nada a ninguém. E agora, eu via-as, fugidias a correr rumo ao fim.
A lágrima mais pesada caiu devagar, rolou quente e fresca, acabada de chorar, tombou no lugar onde a certeza de nada era tudo. Aqui mesmo... onde é o seu lugar.
Às vezes, o mundo é um lugar sem espaço para chorar.

A.P.
(fotografia de Carlos Urbina)

Tentativa 3


Subterrâneos, Karin Godnic
Identidade(2)

Concentro-me nos olhares vivos
Nos gestos fortes
Nas bocas semi-caladas
Sussurrando palavras
Cada um parece ser um
E ser uma
Não qualquer um
Qualquer uma
Mas aquele ou esta
Particular
Especial...

Talvez diferente:
introduzindo a diferença
nos dias
pequenos e grandes
onde deixamos
o tempo passar

Ou igual:
indústria do humano
produção industrial
numa linha de montagem
em cadência repetida
para génese de um humano
só quase individual

E quando oiço dizer: morreu...
Tudo posso imaginar
Nesta existência uniforme
Do muito a sentir igual
Mas diferente
Em cada ser revelado
E encontrado
Nos olhares cativados
Nas memórias insolentes
Onde vivem aprisionados
Por nós
Numa qualquer eternidade
Com a força enfim gritante
De uma certa identidade.

A.P.