segunda-feira, 5 de março de 2007

Fotografia II

Para mim, para todos e, em especial, para S.!

Munoz, O Ballet Nacional de Cuba, 2001


A minha relação com a fotografia tem estado em desenvolvimento e em franco progresso. Há tantas coisas que atraem o meu olhar no correr dos dias! Parece que não prestei a devida atenção a esta técnica com a qual é possível fazer arte. Porque considero ter sido uma lacuna na minha, porventura, cultura geral ( !! - tê-la-ei, tem-se alguma vez quanto baste?), proponho-me dar maior atenção aos fotógrafos. Para isto contribuiu a influência da S., acima referida, em particular por mostrar algumas fotografias que foram, para mim, cativantes. De lá para cá, tenho procurado informar-me e desenvolver o meu gosto ou sentido estético a este nível.
Parece-me também que no registo de imagens, quase fazendo parar o tempo pelo registo de instantes que ficam, há qualquer coisa de mágico. E esta sensação é deveras especial e tenho que confessar, é-me muito cara. Não posso imaginar a vida sem pequenos instantes de magia. Na literatura, no cinema, na pintura, na filosofia, na ciência,na música, etc,etc,etc... e na fotografia!!

Transcrevo excertos de um belíssimo pequeno ensaio, constante de um também belíssimo livro de Giorgio Agamben, uma descoberta recente que me tem encantado e conseguido prender à leitura. Por coincidência, nele encontrei algo que vem imensamente a propósito do meu propósito.

" Que é que me fascina, que me deixa encantado nas fotografias que amo? Creio que se trata, simplesmente, do seguinte: a fotografia é, para mim, de certo modo, o dia do Juízo Universal, representa o mundo tal como aparece no último dia, no Dia da Cólera. Não é, certamente, uma questão de tema, não quero dizer que as fotografias que amo são aquelas que representam qualquer coisa de grave, de sério ou, até, de trágico. Não, a fotografia pode mostrar um rosto, um objecto, um acontecimento qualquer. É o caso de um fotógrafo como Dondero que, tal como Robert Capa, permaneceu sempre fiel ao jornalismo activo e praticou, frequentemente, aquilo a que se poderia chamar a "flânerie" ( ou a "deriva") fotográfica: um passeio sem rumo, fotografando tudo o que aparece. Mas "aquilo que aparece" - o rosto de duas mulheres que passeiam de bicicleta na Escócia, a vitrina de uma loja em Paris - é convocado, é citado a comparecer no Dia do Juízo Final."
Giorgio Agamben, Profanações


J.Binoche, imagem obtida aqui

" (...) No instante supremo,o homem, qualquer homem, fica registado para sempre, no seu gesto mais ínfimo e quotidiano. E, todavia, graças à objectiva fotográfica, aquele gesto fica doravante carregado com o peso de toda uma vida, aquela posição irrelevante, talvez desajeitada, resume e contrai em si o sentido de toda uma existência.

Eu creio que existe uma relação secreta entre gesto e fotografia. O poder que o gesto tem de retomar e convocar ordens inteiras de potências angélicas constitui-se na objectiva fotográfica e tem na fotografia o seu locus, o seu momento tópico. Benjamim escreveu uma vez, a propósito de Julien Green, que este representa os seus personagens num gesto carregado de destino, que os congela na irrevogabilidade de um além infernal. Creio que o inferno que aqui está em causa é um inferno pagão e não cristão. No Hades, as sombras dos mortos repetem até ao infinito o mesmo gesto: (...). Mas não se trata de uma punição, as sombras pagãs não são deuses condenados. A eterna repetição é, aqui, o código (...), da infinita recapitulação de uma existência."
Giorgio Agamben, Profanações

Kim Anderson, O Mundo de Kim Anderson II

"Existe, porém, um outro aspecto nas fotografias que amo e que não queria, de forma alguma, calar. Trata-se de uma exigência: o tema captado na fotografia exige de nós qualquer coisa. O conceito de exigência é algo que prezo especialmente e não há que o confundir com uma necessidade factual. Mesmo que a pessoa fotografada estivesse, hoje, completamente esquecida, mesmo que o seu nome tivesse sido apagado, para sempre, da memória dos homens, ora bem, apesar disso - talvez precisamente por causa disso - aquela pessoa, aquele rosto exigem o seu nome, exigem não ser esquecidos."
Giorgio Agamben, Profanações



Dondero, Pasolini

"Dondero exprimiu, uma vez, uma certa distância em relação a dois fotógrafos que, no entanto, admira, Cartier-Bresson e Sebastião Salgado. No primeiro vê um excesso de construção geométrica, no segundo um excesso de perfeição estética. A ambos opõe a sua concepção do rosto humano como uma história a contar ou uma geografia a explorar. No mesmo sentido, também para mim a exigência que nos interpela das fotografias não tem nada de estético. É, mais, uma exigência de redenção. A imagem fotográfica é sempre mais do que uma imagem; é o lugar de uma separação, de um dilaceramento sublime, entre o sensível e o inteligível, entre a cópia e a realidade, entre a recordação e a esperança.
(...)
É sabido que Proust era um obcecado pela fotografia e que procurava, por todos os meios, obter a fotografia das pessoas que amava e admirava. Um dos rapazes por quem se apaixonou quando tinha 22 anos, Edgar Auber, ofereceu-lhe a seu insistente pedido, um retrato. Nas costas da fotografia escreveu, à guisa de dedicatória: Look at my face: my name is Might Have Been; I am also called No More, Too Late, Farewell ( Olha para a minha cara. O meu nome é Poderia Ter Sido; também me chamo Nunca Mais, Demasiado Tarde, Adeus). A dedicatória é, certamente, pretensiosa mas exprime, bem, a exigência que anima todas as fotografias e capta o real que está constantemente a perder-se para o tornar, de novo, possível."
Giorgio Agamben, Profanações


Robert Doisneau, Jacques Prevert, Paris, 1955

" De tudo isto a fotografia exige que nos recordemos, de todos estes nomes perdidos as fotografias prestam testemunho, tal como o livro da vida que o novo anjo apocalíptico - o anjo da fotografia - tem entre as mãos no fim dos dias, ou seja, em cada dia."
Giorgio Agamben, Profanações